domingo, 21 de junho de 2009

CAIO FERNANDO ABREU



LIVRO “TEATRO COMPLETO”, DE CAIO FERNANDO ABREU, É REEDITADO POR SEUS COMPANHEIROS DE PALCO
Há muitos anos, o livro “Teatro Completo”, de Caio Fernando Abreu, estava esgotado, objeto de desejo de dez entre dez jovens atores do teatro brasileiro. Essa nova geração, mal chegada na casa dos vinte e poucos anos, demonstra um culto apaixonado em relação a ele, carinhosamente chamado de Caio F., como gostava de assinar a correspondência. Mais de dez anos depois da morte dele, o escritor está mais vivo que nunca e sua obra desperta mais discussão e defesa que antes. E é entre as jovens tribos teatrais dos recantos do País que a palavra dele pulsa com intensidade. Proliferam montagens baseadas em seus contos e romances, e o discurso afiado encontrou um veículo de eficácia para preservação da arte dele.

Caio, enquanto viveu entre nós, escreveu com paixão, rigor e disciplina. Ele mesmo, emérito transgressor de costumes e tradições, tinha, no entanto, um respeito absoluto pela palavra escrita. Na página em branco encontrou seu santuário, e tinha reverência e encantamento pelo ato do fazer literário. Como poucos, muito poucos, Caio transformou a literatura em arte viva e fundamental. Não suportava as belas letras mortas da maioria dos nossos escritores de plantão. Queria a palavra que queimasse corações e mentes, e não se afastou nunca desse propósito.

Como a maioria dos escritores brasileiros, pagou um alto preço pela fidelidade inquebrantável. Empregos caretas, concessões ao pagamento dos aluguéis nossos de cada dia, levaram Caio à uma tensão permanente entre sua dedicação ao ofício escolhido e as inevitáveis agruras da vida real. Às vezes com muito humor, às vezes à beira da depressão, levou uma vida inquieta e itinerante, percorrendo cidades e continentes como um cigano inquieto.

Quando estava calmo, era um homem de fala mansa, gestos pequenos, sorriso cativante e simpatia à flor da pele. Quando se sentia acuado, podia ser desmedidamente furioso, injusto e exagerado. Vivi e vi todos os Caios serem pacientemente burilados ao longo de sua carreira de escritor vitorioso. Tive a honra de ser um de seus amigos mais próximos, parceiro de empreitadas teatrais, confidente de contradições demasiadamente humanas.

Meu amigo escreveu para o palco durante todas as fases da vida. É de seu período europeu, quando perambulava como um mendigo por países riquíssimos, um de seus textos mais famosos, “Pode Ser que Seja Só o Leiteiro Lá Fora”, que tive o prazer de dirigir pela primeira vez, no Clube de Cultura de Porto Alegre. O texto flagrava o mundo dos hippies que vagavam por uma Londres perplexa, em busca de empregos e lugares para passar noites geladas e ambientes perigosos. A ação se passa em uma casa abandonada, habitada por excluídos das regalias econômicas de uma época de real mudança nos costumes. A Aids ainda não assombrava aqueles que buscavam na liberação sexual e no consumo das drogas algo além de inércia e dependência química. Caio viveu esse período intensamente, ele mesmo, muito depois, contaminado pelo vírus.E rejeitou os rótulos de vítima.

Viveu como quis, escreveu como poucos, sorveu o mel de um tempo onde ainda havia metas e ideais coletivos, procurou amor em todos os sexos e lugares, desfrutou sua inteligência invulgar amaldiçoando caretas de todos os tipos. Seu teatro reflete seu modo de ver e sentir o mundo. Por isso, o lançamento da Editora Agir é tão bem-vindo. O “Teatro Completo”, de Caio, está novamente disponível aos interessados, em uma edição caprichada, feita por alguns de seus melhores amigos e companheiros de ribalta. Luiz Arthur Nunes e Marcos Breda capitanearam amigos leais para fazer com que a empreitada tivesse êxito e completasse as lacunas da primeira edição. Além dos nomes já citados, Gilberto Gawronski, Susana Saldanha e eu mesmo nos responsabilizamos de entregar ao público uma versão corrigida, com fichas técnicas completas das primeiras encenações de cada um dos seus textos e com fotos originais que foram possíveis resgatar.

Coube a mim revisar a adaptação de “Reunião de Família”, de Lya Luft. Quando li o romance, fiquei fascinado pela estrutura teatral do livro. Sem conhecer a escritora e sabendo que Caio era seu amigo, pedi que intercedesse pelo meu propósito e fomos nós dois, de ônibus, até a casa de Lya, na Chácara das Pedras. Extremamente generosa, Lya só impôs uma condição: que a adaptação para o palco fosse feita por Caio, já que não se sentia com intimidade suficiente com a linguagem do teatro. Alugamos uma casa em Torres e passamos semanas lá, praticamente isolados do mundo, sem celulares nem computador. Falávamos de tudo, ouvíamos músicas dos nossos ídolos, líamos as notícias dos jornais, mas nunca falávamos do real motivo de nossa presença ali, a adaptação da obra de Lya. Quando percebi que não queria falar nada de seu trabalho, respeitei seu método. No último dia de estada, tirou de uma pasta a adaptação. Pronta, perfeita, entusiasmante. De lá para cá, estreitei minha admiração e amizade por Lya Luft e minha emocionada gratidão a ele.

Foi emocionante rever o texto, confrontar o original que guardo comigo, como relíquia preciosa, e o que foi publicado na primeira edição. Imagino que meus companheiros de trabalho tiveram a mesma emoção e o mesmo cuidado. O amor de cada um de nós por Caio Fernando Abreu perpassa as páginas da publicação.

*Luciano Alabarse é diretor de teatro no Rio Grande do Sul.

Nenhum comentário:

Postar um comentário