domingo, 14 de junho de 2009

AS RELAÇÕES NATURAIS

comédia em quatro atos
PERSONAGENS
Impertinente
Consoladora
INTÉRPRETA
Júlia,
Marca e
Mildona - mulheres da vida
Um indivíduo
Truquetruque
Mariposa
Inesperto, criado
Malherbe
Rapazes

ATO PRIMEIRO
Cena Primeira

IMPERTINENTE - Já estava admirado; e consultando a mim mesmo, já me parecia grande felicidade para esta freguesia o não dobrarem os si..... E para eu mesmo não ouvir os tristes sons do fúnebre bronze! Estava querendo sair a passeio; fazer uma visita; e já que a minha ingrata e nojenta imaginação tirou-me um jantar, pretendia ao menos conversar com quem m'o havia oferecido. Entretanto não sei se o farei! Não sei porém o que me inspirou continuar no mais improfícuo trabalho! Vou levantar-me; continuá-lo; e talvez escrever em um morto: talvez nesse por quem agora os ecos que inspiram pranto e dor despertam nos corações dos que os ouvem, a oração pela alma desse a cujos dias Deus pôs termo com a sua Onipotente voz ou vontade! E será esta a comédia em 4 atos, a que denominarei - As Relações Naturais.
(Levanta-se; aproxima-se de uma mesa; pega uma pena; molha em tinta; e começa a escrever:)
São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, - Império do Brasil... Já se vê pois que é isto uma verdadeira comédia! (Atirando com a pena, grita:) Leve o diabo esta vida de escritor! É melhor ser comediante! Estou só a escrever, a escrever; e sem nada ler; sem nada ver (muito zangado). Podendo estar em casa de alguma bela gozando, estou aqui me incomodando! Levem-me trinta milhões de diabos para o Céu da pureza, se eu pegar mais em pena antes de ter... Sim! Sim! Antes de ter numerosas moças com quem passe agradavelmente as horas que eu quiser. (Mais brabo ainda.) Irra! Irra! Com todos os diabos! Vivo qual burro de carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomodar! E sem nada gozar! - Não quero mais! Não quero mais! E não quero mais! Já disse! Já disse! E hei de cumpri-lo! Cumpri-lo! Sim! Sim! Está dito! Aqui escrito (pondo a mão na testa); está feito; e dentro do peito! (Pondo a mão neste.) Vou portanto vestir-me, e sair para depois rir-me; e concluir este meu útil trabalho! (Caminha de um para outro lado; coça a cabeça; resmunga; toma tabaco ou rapé; e sai da sala para um quarto; veste-se; e sai o mais jocosamente que e possível.) Estava (ao aparecer) eu já ficando ansiado de tanto escrever, e por não ver a pessoa que ontem me dirigiu as mais afetuosas palavras! (Ao sair, encontra uma mulher ricamente vestida, chamada Consoladora.)
Cena Segunda
CONSOLADORA - Onde vai, meu caro Sr.? Não lhe preveni eu de que hoje teria em seu palácio a mais bela das damas de São...
IMPERTINENTE - Ora, ora, Sra. Não vê que eu já estou aborrecido das mulheres! (À parte:) É preciso dizer-lhe o contrário do que penso! Como a sra. se abalança ainda a falar em damas na minha presença!? Só se são damas de folgar... São?
CONSOLADORA (mostrando-se indignada, e batendo um pé no assoalho) Bárbaro! Cruel! Não vives a pedir uma mulher jovem, formosa, asseada e bela para tua companhia?! Pensas que ignoro o que pensas; o que fazes!? Não vês; não sabes; não conheces que sou mágica!? Atrevido! Não te lembras que ainda ontem ou anteontem olhaste para mim, e achaste que eu era no Céu o mais lindo, o mais belo e mais agradável planeta que lá habitava? Não me pediste que eu guiasse teus passos; tuas ações; tuas palavras, Audaz! Pensas que eu não sei que ias atrás de mulheres! Para que queres mulher!? Não vives tão bem, não comes, não bebes, não dormes tão descansado?!
IMPERTINENTE - (virando-se para o público) Já se viu que sarna gálica me atormenta! Cruzes! (Benzendo-a.) Cruzes! Eu te desconjuro!
CONSOLADORA - Já disse: o Sr. não sai daqui! (Pega uma cadeira e põe perto da porta de sair.)
IMPERTINENTE - Senhora, se continua deste modo, fique certa que me mato! É preciso ter juízo! Ao contrário, nem serei eu, nem a Sra. minha!
CONSOLADORA - Ah! (levantando-se) Sim: quer ir! Pois vá; mas há de ir sem casaca! (Avança-se a ele, e tira-lhe a casaca; ficando ele de sobre-casaca).
IMPERTINENTE - Ah! Ainda deixa-me a sobrecasaca! Pois irei com ela (Faz uma cortesia a ela e quer sair.)
CONSOLADORA - Sim! Ficou ainda vestido! Pois há de ir sem chapéu. (Avança-se a ele para o tirar; e depois de alguns saltos, consegue fazê-lo; fica-lhe um boné de forma piramidal. Olha, e diz:) Este homem é o diabo! Tiro-lhe as calças... (Vai dirigir-se para tal fim; ele agarra com uma mão em cada perna; e sai aos pulos dizendo:) Se és planeta, eu sou cometa!
CONSOLADORA - (muito triste) E não foi o tal cometa brilhar noutro hemisfério! Nunca mais atendo às petições de amparo, guia, ou proteção a mais cometa algum.
Cena Terceira
(Entra ele com uma menina de 16 anos a quem conhecemos por Intérpreta pelo braço.)
IMPERTINENTE - (para ela, ao transpor a porta) Cuidado! Não se pise nestes tapetes, que já estão um tanto velhos! (Para o público, andando para a frente:) Já se vê que a escolha que fiz hoje, e que pretendo fazer de uma em cada mês, é a... (Para ela:) Digo? Digo?
INTÉRPRETA - Se quiser, pode dizer!
IMPERTINENTE - É uma das melhores que se podia encontrar nos maiores rebanhos desta...
INTÉRPRETA - Pois chama rebanhos às famílias que habitam esta cidade!?
IMPERTINENTE - Pois o que é mais triste que um grande rebanho de ovelhas merinas!?
INTÉRPRETA - Eu sempre considerei de outro modo: sempre entendo que a mulher como o homem é um ente que deve ser por todos respeitado, como a segunda primorosa obra do Criador; e que assim não sendo, só milhares de males e transtornos se observarão na marcha geral da humanidade!
IMPERTINENTE - Há! Há! Há! A menina está no mundo da lua! Ainda crê nas caraminholas que lhe encaixam na cabeça, de seu avô torto, visto que segundo as últimas participações espirituais que tivemos, o direito há muito que é morto!
INTERPRETA - (à parte) Em que caí eu, acompanhando este mono! Isto, é um monte de carne, sem lei, sem moral, sem religião! Mas ainda é tempo! Quando menos pensar, desapareço de sua presença, como a escuridão ao brilhar da lua! Não me logras, velho enjoado!
IMPERTINENTE - (para ela) Minha queridinha! Temos aqui um quarto cheio de roupa! (Apontando) Ali um outro repleto de comestíveis! Acolá um guarda-louça; naquele canto a cozinha.
INTERPRETA - (aproximando-se; olha; e nada vê; voltando-se para ele) Sabes que mais? Eu nunca me sustentei de palavras, e muito menos de mentiras! (Sai.)
IMPERTINENTE - (querendo pegÁ-la) Meu anjo! Minha deusa! Aonde vai! Venha cá!
INTERPRETA - Já lhe disse: vou-me embora; e aqui não entro mais; o Sr. enganou-me: quis enganar-me; mas enganou~e a si próprio! (Sai)
IMPERTINENTE - (voltando-se) É a trigésima, vigésima e décima vez que me prega estes carões! Diabo! Diabo! e Diabo!
ATO SEGUNDO
Cena Primeira
TRUQUETRUQUE - (batendo em uma porta) Estará ou não em casa? A porta está fechada não vejo (vigia no buraco da chave) se é por dentro se é por fora que está a chave; o caso é (dando com a cabeça), e verdadeiro, que a Sra. D. Gertrudes Guiomar da Costa Cabral Mota e MeIo, se está é às escuras! Sem dúvida a esta hora, noite de teatro, noite de retreta, noite de novena, não é possível deixar de ter ido a alguns destes divertimentos: se à Igreja, já se sabe - por devoção! Se ao Templo, por oração! E finalmente, se... não digo (Caminhando para o centro). Para que hei de mostrar (abrindo os braços) que sou um grande dialeta, retórico, filósofo! Etc. Etc. Pode ser que ficassem depois com inveja; e em vez de alimento para eu continuar a brilhar com o meu grande talento a todo o momento, darem-me envenenamento! Com o qual eu, muito contra a minha vontade e vontade santíssima! possa ir fazer a viagem... eterna ao fundo de algum dos maiores infernos que lá por baixo da terra devem existir! Ainda se me metessem aqui, e eu saíra lá no ponto oposto onde habitam os nossos... também não sei se são nossos, ou se são só meus! (Para o público:) Como chamam estes cujos pés fazem... quando estão lá em pé têm as solas dos sapatos, se não andam de botas, voltadas para a sala dos nossos? Hein? Anfíbios, não! Isto é cousa que anda no mar, e em terra! Hermafroditos! não; isto também é outra cousa, é o que é macho e fêmea! Cabrito não é. Não me posso lembrar. Enfim dizia eu que se lá fosse habitar quando entre na terra com esses cujos pés estão virados para os nossos, que teria muito prazer; mas como é de supor que a minha habitação por envenenamento seja a mais completa e trivial destruição - declaro que não aceito, que não quero; que não concordo!
Cena Segunda
Abre-se de repente uma porta; aparecem por ela, e por diversas outras, três ou quatro mulheres, umas em saias, outras com os cabelos desgrenhados; pés no chão, etc.
UMA DELAS - (para um indivíduo) - Que quer o Sr. aqui?
OUTRA - (puxando-o por um braço) O que faz?
OUTRA - Quem o mandou cá?
OUTRA - Não sabe que sempre foi um homem honesto quanto a... e que nós somos todas prostitutas!? É um tolo! Safe-se daqui para fora, Sr. maroto! Senão, olhe (mostrando-lhe o punho) - havemos de esmurrá-lo com esta mão de pilão!
ELE - Minhas santinhas; (com muita humildade) minhas santinhas, eu queria dormir com vocês esta noite.
ELAS - (dando uma grande gargalhada) Ah! ah! ah!
UMA (para outra) Não queres ver, Mana, o desaforo, a petulância deste estúrdio!? Querer passar conosco a noite, quando nós sabemos que ele é conde e tem filhos carnais!
OUTRA - Ah! ah! ah! Se fossem só os carnais era nada (batendo no ombro da que primeiro fala) - os espirituais é que é; que não têm conta.
OUTRA - Ele já está esquecido que os discípulos o fizeram padre eterno; e que por isso não deve tocar em carne.
OUTRA - (apontando com o mostrador) Já, seu maroto, rua! senão...
ELE - Isto é o diabo! Estas mulheres chamam-me com o espírito quando estou em casa; e quando saio à rua, com as palavras, com as mãos, com os dedos, com a cabeça, com os olhos, e se as encontro fora, então é até com seus remexidos! Mas se lhes venho à casa, é isto que se vê! Cruzes! (Cuspindo em todas elas.) Abrenúncio! Eu as desconjuro para nunca mais as ver! Não olharei mais para estas tigras! (Sai.)
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Cena Terceira
UMA DELAS - (Olhando-se) Ora; ora; ainda agora é que reparo! Estou quase em fraldas de camisa! Vejam este maluco como me pôs também maluca!
OUTRA - (alisando os cabelos) E eu com os cabelos todos desgrenhados! Se ele cair em vir cá outra vez, hei de enforcá-lo com uma destas tranças, e pendurá-lo no vácuo deste salão.
OUTRA - E que bonito ele há de ficar, mana, se qual lontra aqui o pusermos! Havemos de enche-lo de livros; será... - um centro! Como um sol que dardejará seus raios para todos os cantos desta casa, para todos os cantos do hemisfério que alumia!
OUTRA - Mas isto é dar muita importância a esse Judas, fazê-lo centro de tudo.
AS PRIMEIRAS - O que tem? Esse diabo já o tem sido de luz espiritual, agora que o seja também de luz material!
UMA DELAS - Sabem o que mais? - Vamos vestirmo-nos e pôr-mo-nos às janelas à espera de vermos os nossos namorados!
TODAS - Apoiado! Não percamos nossos costumes por causa de um maluco! Vamos! Vamos! (Entram todas para os quartos d'onde saíram.)
Cena Quarta
VELHA MARIPOSA - (entrando toda cheia de dengosidade, pegando os vestidos como quem quer dançar, e comete outros numerosos atos, que indicam a pregoeira gaiata da presente época) Ainda há cinco minutos, era esta sala um teatro de moças quase nuas! Acompanhadas de certo individuo de meia idade, que parece mais um velho bem doente, que um homem são, valente e cheio de... certa cousa... certa força que eu não quero dizer, porque não é tão decente como convém a tão ilustre assembléia! (Olhando para diversos lados.) Onde estão estas meninas? Júlia! Júlia!
JÚLIA - Sra.? Sra.?
MARIPOSA - Vem cá, menina! Chama as tuas irmãs!
JÚLIA - Ora, Mamãe; eu ainda não estou vestida!
MARIPOSA - Entra, chama uma das tuas Irmãs!
JÚLIA - Está bom, Mamãe; eu já vou.
MARIPOSA - Muito custa a criar filhas! Ainda mais acomodar; muito mais casar; e ainda pior aturá-las! Pilham-se moças, e o que querem é namorar!
JÚLIA - (entrando e sacudindo os vestidos) Acabava eu agora mesmo...
MARIPOSA - Já sei; acabas de... Basta; não prossigas! Tu és, eu sei o quê!
JÚLIA - (pondo as mãos) Por piedade, minha querida Mãe! Não faça de mim o menor mau juÍzo! Sabe que sempre fui uma de suas melhores filhas, obediente e respeitosa, e mais que tudo - amorosa!
MARCA - (irmã de Júlia, entrando mui ligeiramente, ou fazendo alguns passos de dança até chegar perto da Mãe; ao chegar, ajoelha-se, pega-lhe na mão e beija-a) Minha - mais que todas as mulheres, Querida Mãe! Eis-me prostrada a seus pés, para pedir-lhe perdão de quantos pecados hei cometido, ou guisados hei comido! Perdoa, Mamãezinha, perdoa, sim?
MARIPOSA - Sim; sim. Está perdoada; pode levantar-se. Mas não torne a cair em outra! Eu conheço seus crimes.
MARCA - (levantando-se) Sim; sim. Quanto sou feliz! A minha querida mãe quanto é boa! Ainda pela quinta vez quis perdoar à sua mais desobediente, cruel, ou mesmo - tirana filha!
MARCA - Eu não sei deles. Vossa Mercê bem sabe que moro sozinha no meu quarto; a mana é que há de saber!
MARIPOSA - Onde estão? Não me diz? Ainda não me vieram tomar a bênção, sendo entretanto mais de oito horas! (Entram os outros filhos.)
ELES - (estendendo as mãos) Sua bênção, minha Mãe.
MARIPOSA - (fazendo sinal com a mão) Deus abençoe a todos, que eu o faço em particular a cada um. Sim, meninas, são horas de missa; vamos cobrir nossos véus, e sigamos a orar ao Senhor - por nós e por nossos avós!
TODOS - Prontos a obedecê-la, a segui-la. (Saem todos).
ATO TERCEIRO
Cena Primeira
INESPERTO - (criado) Por mais que arrume (atirando com uma bota para um lado; com um livro para outro; com uma bandeja no chão; com um espanador para um canto; e assim com tudo o mais que se achava arrumado), sempre encontro esta sala, este quarto, ou como o quiserem chamar... câmara, dormitório, ou não sei que mais - desarrumado! Nada, nada, isto não pode continuar assim! Ou hei de deixar de ser criado desta casa, ou as cousas hão de conservar-se nos lugares em que eu arrumo! São honras que a ninguém eu cedo... O que porém é mais notável é que além de me não respeitarem, nem obedecerem - não pagam-me também nem a quinta parte dos salários comigo contratados! Mas nada me hão de ficar a dever! Quando retirar-me, hei de levar o dobro do que houver licitamente ganho, a fim de que paguem-me os prêmios, pois não estou resolvido a perdê-los!
Cena Segunda
MALHERBE - (amo muito espantado, entrando)
Que é isto, Judas!? Enlouqueceste-o, Inesperto? Onde está tua Ama?
INESPERTO - Qual enlouqueci... Todos os dias arrumo esta casa; e em todos os dias nela acho que arrumar; e ainda pergunta-me por minha ama, mulher feia, velha e má! Se há de ainda ir ver as moças, este tagarela, é isto todos os dias... Ainda coisa mais mol, mais ruim, que este meu amo (para o amo, dando com a mão): Vá-se embora daqui para fora, senão - o matam, seu Judeu Errante!
MALHERBE - Este diabo está hoje com o demo nas tripas!... Ó Judas, dize-me: o que comeste hoje? Bebeste vinho? champanha, vinagre, água-forte? Que diabo tens tu hoje? Estás bêbado?
INESPERTO - Qual bêbado, nem meio bêbado: nunca estive eu em meu tão perfeito estado de juízo ou de mais completa saúde!
MARIPOSA - (entrando) Ih!... que espalhafato fez o Judeu hoje! (Querendo arrumar tudo; para o marido:) Senhor, tome juízo; despeça esse maldito, que não faz senão o que está vendo! O Sr. parece-me cego. Embalde (metendo os dedos nos olhos do marido) tem dois fogões nesta cara; tu não enxergas.
MALHERBE - Tu, teu criado, e tuas filhas, não são entes da espécie humana. São malditas feras que aqui habitam para flagelar-me! (Para ambos:) Fora daqui! Se demoram pego em tudo isto (agarrando as mesas) e penduro quais rosários nas cabeças de vocês dois!.
MARIPOSA - (para o criado) Sabes o que convém fazer: é safarmo-nos! O homem hoje está resoluto a matar, ou
mostrar-nos que é Senhor desta casa.
INESPERTO - Diz bem, minh'ama; vamos nós saindo em boa paz! (Enfia o braço na ama.) É melhor - velha, feia, má, que nenhuma! (Abanando com a mão.) Adeus, Sr. estúrdio! Adeus, até mais ver! (Saem.)
Cena Terceira
MALHERBE - (só) 'Estes diabos têm tentado devorar-me por todos os modos! Mas eu os hei de pôr no estado o mais deplorável que se pode imaginar! Deixemos, deixemos; eles para cá hão de vir (dando alguns passeios, coçando a barba, compondo o cabelo etc.)
MILDONA - (entrando) Que saudades eu tinha de meu querido Pai!
MALHERBE - Ah! és tu, minha querida Mildona? Quanto é doce vermos feitos de nossos trabalhos de longos anos!? Um abraço, minha estimadÍssima, minha mesmo queridíssima filha!
MILDONA - O Sr. não reparou bem; eu não sou a sua encantadora filha; mas a jovem a quem o Sr. em vez de amizade, sempre há confessado tributar amor!
MALHERBE - Ah! onde estava eu!? Sonhava; pensava em ti; via, e não te enxergava! Sim, sois minha; és minha; e serás sempre minha por todos os séculos dos séculos, Amém! (Saem.)
Cena Quarta
O CRIADO - (entrando, pé-ante-pé) Amolei tudo! Não pensem que farão espadas, facas, punhais, ou lanças! Mas os amáveis que desprezando todos os direitos dos cidadãos brasileiros, matavam e roubavam a seu belo prazer! O tal meu amo entendia que cada botina que comprava, e que calçava, era uma mulher que condenava ao matadouro dos seus desejos! E a tal minha ama procedia do mesmo modo quanto ao xales que a cobria; dizia (pegando, e pondo um xale:) isto é masculino, está portanto relacionado com um homem; é novo; e por isso, assim como eu me cubro com ele, também há de me cobrir esta noite um bom moço! E assim é que não havia Pai, nem filho; Mãe ou filha que pudesse, nem por cinco minutos, ter descanso e tranqÜilidade em suas habitações!
MALHERBE - (entrando de bengala) Ah! ainda estás aqui! Toma! (Dá-lhe com a bengala até que sai disparando por uma das portas, gritando:) Não quero mais servi-lo! Não quero! Não quero! já disse.
Cena Quinta
(A moça [Mildona] sai do quarto; e entra apressadamente na sala; para o amigo:)
Que é isto, que é isto, Sr.? Que é isto...! Entrou aqui algum ladrão! Algum assassino! O Sr., de bengala, gritando e dando pancada!
MALHERBE (muito terno) Não é cousa alguma, menina; foi apenas uma lição que quis dar a este mariola, que tem o título de meu criado: quis fazer-se de amo! Agora porém que já lecionei, podemos gozar tranqüilos de uma existência feliz! (Dão dois ou três passeios pela sala, e sentam-se em um sofá; conversam sobre várias cousas; ouvem bater; levanta-se a moça; vai à porta, e foge espavorida; entra assim para um dos quartos. Levanta-se ele cheio de espanto; chega também à porta, dá um grito de dor, diz:) São eles! São eles! São eles! (Cai desfalecido, e assim termina o segundo ato. Milhares de luzes descem e ocupam o espaço do cenário.)
ATO QUARTO
Cena Primeira
Tudo corre; tudo grita (mulher; filhos; marido; criado, que por um dia foi amo do amo).
Incêndio! Incêndio! Incêndio! Venham bombas! Venha água! (É um labirinto, que ninguém se entende, mas o fogo, a fumaça que se observa, não passa, ou o incêndio não real, mas aparente).
Pegam em barris dágua, em canecas e outros vasos; e todos atiram água para o ar; chega uma bomba pequena, e com ela também atiram água, por espaço de alguns minutos; mas o incêndio parece lavrar com mais força até que se extingue ou desaparece.
MALHERBE - (depois de todos tranqüilos) Sempre a desordem nas casas sem ordem! Sempre as perdas; os desgostos; os incômodos de todas as espécies! Santo Deus! por que não crucificais aqueles que desrespeitam vossos santos preceitos!? Mas, que digo? Se continuo, estas mulheres são capazes de pendurar-me naquela travessa, e aqui deixarem-me exposto, por não querer acompanhá-las em seus modos de pensar e de julgar! O melhor é retirar-me! Vou descansar por alguns minutos. (Sai.)
Cena Segunda
ELAS - (umas para as outras) Preparemo-nos para pregar um susto neste mariola! Já que ele não quer obedecer aos nossos chamados espirituais, e aos das outras mulheres; já que é preguiçoso, vaidoso, ou orgulhoso; ao menos preguemos-lhe um susto!
TODAS - Apoiado! Apoiadíssimo! Ou ele há de ser obediente às Leis, ou havemos de enforcá-lo, ainda que seja só por alguns momentos e divertimento! Deixemos ele vir. (Preparam uma corda; e tudo o mais que as pode auxiliar para tal fim; conversam sobre os resultados e conseqüências de sua empresa, e o que farão depois; entretanto entra o criado com ele em figura forte de papelão, abraçado para poder acompanhá-lo; e é esta a 3.ª Cena.). Cumprimentam-se todos muito alegremente; e conversam.
UMA DELAS - (para o criado) Ora muito bem! Já se vê quanto é bom viver conforme as relações naturais. Eu gosto de mingau de araruta ou de sagu, por exemplo - como; e porque está relacionado com certo jovem a quem amo; ele aqui me aparece, e eu o gozo! Já se vê pois que, vivendo conforme elas, é em duplicata!
OUTRA - É verdade, mana; eu, como a comida de que mais gosto é coco; e porque este se relaciona com certo amigo de meu Pai, ele aqui também virá, e o meu prazer não será só de paladar, mas também aquele que provém do amar!
OUTRA - Pois eu, como o que mais aprecio é chocolate, bebê-lo-ei, bebê-lo-ei; e por idênticas razões gozarei dele e de quem não quero dizer! Mas o diabo é que assim ficam sem cousa alguma!
MARIPOSA - Pois eu, como gosto muito do meu criado, e ele é mel de abelha, já se sabe o que eu de hoje em diante hei de sempre comer ou beber! (Para o marido de papelão:) E o Sr., Sr. Tralhão, que não quis acompanhar-nos nas relações naturais, importando-se sempre com direitos; não vendo que o próprio direito autoriza, dizendo que cada um pode viver como quiser e com quem quiser; há de ficar aqui pendurado para eterna glória das mulheres, e exemplo final dos homens malcriados! Contamos (para o criado) com teu auxílio.
INESPERTO - Não precisamos ter trabalho, porque ele está dormindo, com certa flor que lhe dei a cheirar!
ELAS - Oh! então melhor! Venham as cordas! (Para o criado:) Vê uma escada; trepa lá; sobe naquela trave; leva esta corda, que nós cá o amarremos pelo pescoço, e depois tu o sungas.
INESPERTO - Sim; mas como diabo há de ser! Ah! é preciso a Sra. pegar nele para não cair.
MARIPOSA - Eu seguro!
INESPERTO - (pega a escada, põe em lugar próprio, sobe, levando a corda, e depois desce.) (À parte:) Estas mulheres não vêem que não se pode ainda andar com as relações naturais; que se umas querem, outras não querem; que se umas podem, outras não podem; que... enfim, são o diabo! Mas elas agora vão conhecer que eu sou homem, e que por isso mesmo hei de defender e amparar aqueles a quem elas quiserem crucificar! (Amarra a corda ao pescoço da figura; e diz:) Está bem atada! Agora vou sungá-lo! (Sobe a escada, monta na trave, e puxando:) Pesa como o diabo! Não terá dez arrobas? Mas quinze eu juro que pesa! Irra! (Puxando.) Irra! Arriba! Agora, agora já está seguro!
ELAS - (umas para as outras) Há de ficar pendurado! Ah! ah! ah! Há de, há de! (Batem palmas.) Que triunfo! Viva! Viva! Agora, maninha; já enforcamos este, havemos de enforcar também certo grilo; e andar com as relações à vontade dos corações!
TODAS - Apoiado! Apoiado! Enforquemos tudo quanto é autoridade que nos quer estorvar de gozar, como se estivéssemos em um paraíso terreal!
INESPERTO - (depois de haver prendido o corpo da figura na trave) Pois não! Não vê que meu amo havia de ser enforcado, para as Sras. fazerem quando quisessem! Boas! Lá vai bola! Relações, metralha (Arranca um braço, atira numa delas.)
MARCA - Ah! traidor! (Encolhe-se.)
INESPERTO - Lá vai um estilhaço. Toma relação! (Atira outro braço noutra).
JÚLIA - Bárbaro! Louco!
INESPERTO - Mais outro! (Arranca a cabeça, ou o chapéu, e atira em outra, dizendo:) Querem mais!? Se quiserem, venham buscar cá em cima, que eu vou juntar-me ao meu muito respeitável amo. (Levanta-se em cima da trave, e sai ou desaparece.)
ELAS - (uma para as outras a enxugarem os olhos:) Que tirano! Que cruel! Que bárbaro! Que assassino! De modo que assim sendo, se pode ainda hoje fazer... Cantemos todas;
1.º
- Não nos meteremos
Mais com relações;
Maridos procuremos;
Pois temos corações!
2.º
A nenhum mais tentaremos
Destruir seus sentimentos!
A um só nós serviremos,
P'ra não ter duros tormentos!
3.º
Com nenhum nos contentarmos,
Ou a todos não querermos;
É assim querer matar-nos,
Pondo todos quase enfermos.
4.º
Tenhamos pois juÍzo!
Cada qual com seu esposo!
Se não, não há paraíso!
Tudo inferno! - nenhum gozo!
5.º
Para comermos;
Para bebermos,
Não precisamos
De certos dramas!
6.º
De andar,
Sempre a matar,
Os corações
Com as relações!
7.º
Os que só querem
(Que desesperem!)
Por relações
São veros ladrões!
8.º
Basta o trabalho,
Certo, não falho;
Para vivermos;
E mil gozos termos.
Fim do 4.º ato, e da comédia escrita em 14 de maio de 1866, por José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo, em a cidade de Porto Alegre, sala n.º 21, no Beco do Rosário.

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