domingo, 2 de maio de 2010

Os Deuses de casaca - Teatro de Machado de Assis


Publicado originalmente pelo Tipografia do Imperial Instituto Artístico, Rio de Janeiro, 1866.

A

José Feliciano de Castilho

Dedica este livrinho

O Autor

PERSONAGENS

PRÓLOGO

EPÍLOGO

JÚPITER

MARTE

APOLO

PROTEU

CUPIDO

VULCANO

MERCÚRIO

O autor desta comédia julga-se dispensado de entrar em explanações literárias a propósito de uma obra tão desambiciosa. Quer, sim, explicar o como ela nasceu, e o seu pensamento ao escrevê-la. Foi há mais de um ano, quando alguns cavalheiros davam uns saraus literários, na rua da Quitanda, que o autor, convidado a contribuir para essas festas, escreveu Os deuses de casaca. Até então era o seu talentoso amigo Ernesto Cibrão quem escrevia as peças que ali se representavam. Um desastre público impediu a exibição de Os deuses de casaca naquela época, e em boa hora veio o desastre (egoísmo do autor!), porque a comédia, relida e examinada, sofreu correções, acréscimos, até ficar aquilo que foi habilmente representado no sarau da Arcádia Fluminense, em 28 de dezembro findo, pelos mesmos cavalheiros dos antigos saraus, arcades omnes.

Que ela ficasse completa, não ousa dizê-lo o autor; mas ao menos está consignada a sua boa vontade.

Uma das condições impostas ao autor desta comédia, e ao autor do Luís, era que nas peças não entrassem senhoras. Daqui vem que o autor não pôde como lhe pedia o assunto, fazer intervir as deusas do Olimpo no debate e na deserção dos seus pares. Os que conhecem estas coisas avaliarão a dificuldade de escrever uma comédia sem damas. Era menos difícil a Garrett e a Voltaire, pondo em ação as virtudes romanas e as lutas civis da república dispensar o elemento feminino. Mas uma comédia sem damas para entreter os convivas de uma noite, cujos limites eram uma variação de piano e o serviço de chá, é coisa mais fácil de ler que de fazer.

O autor não quis zombar dos deuses, não quis fazer rir os espectadores à custa dos antigos habitantes do Olimpo. Esta declaração é necessária para avisar aqueles que, dando ao título da comédia uma errada interpretação, cuidarem que vão ler um quadro burlesco, à moda do Virgile travesti de Scarron.

Uma crítica anódina, uma sátira inocente, uma observação mais ou menos picante, tudo no ponto de vista dos deuses, uma ação simplicíssima, quase nula, travada em curtos diálogos, eis o que é esta comédia.

O autor fez falar os seus deuses em verso alexandrino: era o mais próprio.

Tem este verso alexandrino seus adversários, mesmo entre os homens de gosto, mas é de crer que venha a ser finalmente estimado e cultivado por todas as musas brasileiras e portuguesas. Será essa a vitória dos esforços empregados pelo ilustre autor das Epístolas à Imperatriz, que tão paciente e luzidamente tem naturalizado o verso alexandrino na língua de Garrett e de Gonzaga.

O autor teve a fortuna de ver os seus Versos a Corina, escritos naquela forma, bem recebidos pelos entendedores.

Se os alexandrinos desta comédia tiverem igual fortuna, será essa a verdadeira recompensa para quem procura empregar nos seus trabalhos a consciência e a meditação.

Rio, 1º de janeiro de 1866.

ATO ÚNICO

(Uma sala, mobiliada com elegância e gosto; alguns quadros mitológicos. Sobre um consolo garrafas com vinho, e cálices).

PRÓLOGO

(entrando)

Querem saber quem sou? O Prólogo. Mudado

Venho hoje do que fui. Não apareço ornado

Do antigo borzeguim, nem da clâmide antiga.

Não sou feio. Qualquer deitar-me-ia uma figa.

Nem velho. Do auditório alguma ilustre dama,

Valsista consumada aumentaria a fama,

Se comigo fizesse as voltas de uma valsa.

Sou o Prólogo novo. O meu pé já não calça

O antigo borzeguim, mas tem obra mais fina:

Da casa do Campas arqueia uma botina.

Não me pende da espádua a clâmide severa,

Mas o flexível corpo, acomodado à era,

Enverga uma casaca, obra do Raunier.

Um relógio, um grilhão, luvas e pince-nez

Completam o meu traje.

E a peça? A peça é nova.

O poeta, um tanto audaz, quis pôr o engenho à prova.

Em vez de caminhar pela estrada real,

Quis tomar um atalho. Creio que não há mal

Em caminhar no atalho e por nova maneira.

Muita gente na estrada ergue muita poeira,

E morrer sufocado é morte de mau gosto.

Foi de ânimo tranqüilo e de tranqüilo rosto

À nova inspiração buscar caminho azado,

E trazer para a cena um assunto acabado.

Para atingir o alvo em tão árdua porfia,

Tinha a realidade e tinha a fantasia.

Dois campos! Qual dos dois? Seria duvidosa

A escolha do poeta? Um é de terra e prosa,

Outro de alva poesia e murta delicada.

Há tanta vida, e luz, e alegria elevada

Neste, como há naquele aborrecimento e tédio.

O poeta que fez? Tomou um termo médio;

E deu, para fazer uma dualidade,

A destra à fantasia, a sestra à realidade.

Com esta viajou pelo éter transparente

Para infundir-lhe um tom mais nobre... e mais decente.

Com aquela, vencendo o invencível pudor,

Foi passear à noite à rua do Ouvidor.

Mal que as consorciou com o oposto elemento,

Transformou-se uma e outra. Era o melhor momento

Para levar ao cabo a obra desejada.

Aqui pede perdão a musa envergonhada:

O poeta, apesar de cingir-se à poesia,

Não fez entrar na peça as damas. Que porfia!

Que luta sustentou em prol do sexo belo!

Que alma na discussão! que valor! que desvelo!

Mas... era minoria. O contrário passou.

Damas, sem vosso amparo a obra se acabou!

Vai começar a peça. É fantástica: um ato,

Sem cordas de surpresa ou vistas de aparato.

Verão do velho Olimpo o pessoal divino

Trajar a prosa chã, falar o alexandrino,

E, de princípio a fim, atar e desatar

Uma intriga pagã.

Calo-me. Vão entrar

Da mundana comédia os divinos atores.

Guardem a profusão de palmas e de flores.

Vou a um lado observar quem melhor se destaca.

A peça tem por nome — Os deuses de casaca.


Cena I

MERCÚRIO (assentado), JÚPITER (entrando)

JÚPITER

(entra, pára e presta ouvido)

Cuidei ouvir agora a flauta do deus Pã.

MERCÚRIO

(levantando-se)

Flauta! é um violão.

JÚPITER

(indo a ele)

Mercúrio, esta manhã

Tens correio.

MERCÚRIO

Ainda bem! Eu já tinha receio

De que perdesse até as funções de correio.

Quero ao menos servir aos deuses, meus iguais.

Obrigado, meu pai! — Tu és a flor dos pais,

Honra da divindade e nosso último guia!

JÚPITER

(senta-se)

Faz um calor! — Dá cá um copo de ambrósia

Ou néctar.

MERCÚRIO

(rindo)

Ambrósia ou néctar!

JÚPITER

É verdade!

São as recordações da nossa divindade,

Tempo que já não volta.

MERCÚRIO

Há de voltar!

JÚPITER

(suspirando)

Talvez.

MERCÚRIO

(oferecendo vinho)

Um cálix de Alicante? Um cálix de Xerez?

(Júpiter faz um gesto de indiferença; Mercúrio deita

vinho; Júpiter bebe)

JÚPITER

Que tisana!

MERCÚRIO

(deitando para si)

Há quem chame estes vinhos profanos

Fortuna dos mortais, delícia dos humanos.

(bebe e faz urna careta)

Trava como água estígia!

JÚPITER

Oh! a cabra Amaltéia.

Dava leite melhor que este vinho.

MERCÚRIO

Que idéia!

Devia ser assim para aleitar-te, pai!

(depõe a garrafa e os cálices)

JÚPITER

As cartas aqui estão Mercúrio. Toma, vai

Em procura de Apolo, e Proteu e Vulcano

E todos. O conselho é pleno e soberano.

É mister discutir, resolver e assentar

Nos meios de vencer, nos meios de escalar

O Olimpo...

(Sai Mercúrio.)



Cena II

JÚPITER

(só, continuando a refletir)

...Tais outrora Encélado e Tifeu

Buscaram contra mim escalá-lo. Correu

O tempo, e eu passei de invadido a invasor!

Lei das compensações! Então, era eu senhor;

Tinha o poder nas mãos, e o universo a meus pés.

Hoje, como um mortal, de revés em revés,

Busco por conquistar o posto soberano.

Bem me dizias, Momo, o coração humano

Devia ter aberta uma porta, por onde

Lêssemos, como em livro, o que lá dentro esconde.

Demais, dando juízo ao homem, esqueci-me

De completar a obra e fazê-la sublime.

Que vale esse juízo? Inquieto e vacilante,

Como perdida nau sobre um mar inconstante,

O homem sem razão cede nos movimentos

A todas as paixões, como a todos os ventos.

É o escravo da moda e o brinco do capricho.

Presunçoso senhor dos bichos, este bicho

Nem ao menos imita os bichos seus escravos.

Sempre do mesmo modo, ó abelha, os teus favos

Destilas. Sempre o mesmo, ó castor exemplar,

Sabes a casa erguer junto às ribas do mar.

Ainda hoje, empregando as mesmas leis antigas,

Viveis no vosso chão, ó próvidas formigas.

Andorinhas do céu, tendes ainda a missão

De serdes, findo o inverno, as núncias do verão.

Só tu, homem incerto e altivo, não procuras

Da vasta criação estas lições tão puras...

Corres hoje a Paris, como a Atenas outrora;

A sombria Cartago é a Londres de agora.

Ah! Pudesses tornar ao teu estado antigo!



Cena III

JÚPITER, MARTE, VULCANO (os dois de braço).

VULCANO

(a Júpiter)

Sou amigo de Marte, e Marte é meu amigo.

JÚPITER

Enfim! Querelas vãs acerca de mulheres

É tempo de esquecer. Crescem outros deveres,

Meus filhos. Vênus bela a ambos iludiu.

Foi-se, desapareceu. Onde está? quem a viu?

MARTE

Vulcano.

JÚPITER

Tu?

VULCANO

É certo.

JÚPITER

Aonde?

VULCANO

Era um salão.

Dava o dono da casa esplêndida função.

Vênus, lânguida e bela, olhos vivos e ardentes,

Prestava atento ouvido a uns vãos impertinentes.

Eles em derredor, curvados e submissos,

Faziam circular uns ditos já cediços,

E, cortando entre si as respectivas peles,

Eles riam-se dela, ela ria-se deles.

Não era, não, meu pai, a deusa enamorada

Do nosso tempo antigo: estava transformada.

Já não tinha o esplendor da suprema beleza

Que a tornava modelo à arte e à natureza.

Foi nua, agora não. A beleza profana

Busca apurar-se ainda a favor da arte humana.

Enfim, a mãe de amor era da escuma filha,

Hoje Vênus, meu pai, nasce... mas da escumilha.

JÚPITER

Que desonra.

(a Marte)

E Cupido?

VULCANO

Oh! esse...

MARTE

Fui achá-lo

Regateando há pouco o preço de um cavalo.

As patas de um cavalo em vez de asas velozes!

Chibata em vez de seta! — Oh! mudanças atrozes!

Té o nome, meu pai, mudou o tal birbante;

Cupido já não é; agora é... um elegante!

JÚPITER

Traidores!

VULCANO

Foi melhor ter-nos desenganado:

Dos fracos não carece o Olimpo.

MARTE

Desgraçado

Daquele que assim foge às lutas e à conquista!

JÚPITER

(a Marte)

Que tens feito?

MARTE

Oh! por mim, ando agora na pista

De um congresso geral. Quero, com fogo e arte,

Mostrar que sou ainda aquele antigo Marte

Que as guerras inspirou de Aquiles e de Heitor.

Mas, por agora nada! — É desanimador

O estado deste mundo. A guerra, o meu ofício,

É o último caso; antes vem o artifício.

Diplomacia é o nome; a coisa é o muito engano.

Matam-se, mas depois de um labutar insano;

Discutem, gastam tempo, e cuidado e talento;

O talento e o cuidado é ter astúcia e tento.

Sente-se que isto é preto, e diz-se que isto é branco:

A tolice no caso é falar claro e franco.

Quero falar de um gato? O nome bastaria.

Não, senhor; outro modo usa a diplomacia.

Começa por falar de um animal de casa,

Preto ou branco, e sem bico, e sem crista e sem asa,

Usando quatro pés. Vai a nota. O argüido

Não hesita, responde: "O bicho é conhecido,

É um gato". "Não senhor, diz o argüente: é um cão".

JÚPITER

Tens razão, filho, tens!

VULCANO

Carradas de razão!

MARTE

Que acontece daqui? É que nesta Babel

Reina em todos e em tudo uma coisa — o papel.

É esta a base, o meio e o fim. O grande rei

É o papel. Não há outra força, outra lei.

A fortuna o que é? Papel ao portador;

A honra é de papel; é de papel o amor.

O valor não é já aquele ardor aceso;

Tem duas divisões — e de almaço ou de peso.

Enfim, por completar esta horrível Babel,

A moral de papel faz guerra de papel.

VULCANO

Se a guerra neste tempo é de peso ou de almaço,

Mudo de profissão: vou fazer penas de aço!



Cena IV

OS MESMOS, CUPIDO

CUPIDO

(da porta)

É possível entrar?

JÚPITER

(a Marte)

Vai ver quem é.

MARTE

Cupido.

CUPIDO

(a Júpiter)

Caro avô, como estás?

JÚPITER

Voltas arrependido?

CUPIDO

Não; venho despedir-me. Adeus.

MARTE

Vai-te, insolente.

CUPIDO

Meu pai!...

MARTE

Cala-te!

CUPIDO

Ah! não! Um conselho prudente:

Deixai a divindade e fazei como eu fiz.

Sois deuses? Muito bem. Mas, que vale isso? Eu quis

Dar-vos este conselho; é de amigo.

MARTE

É de ingrato.

Do mundo fascinou-te o rumor, o aparato.

Vai, espírito vão! — Antes deus na humildade,

Do que homem na opulência.

CUPIDO

É fresca a divindade!

JÚPITER

Custa-nos caro, é certo: a dor, a mágoa, a afronta,

O desespero e o dó.

CUPIDO

A minha é mais em conta.

VULCANO

Onde a compras agora?

CUPIDO

Em casa do alfaiate;

Sou divino conforme a moda.

VULCANO

E o disparate.

CUPIDO

Venero o teu despeito, ó Vulcano!

MARTE

Venera

O nosso ódio supremo e divino...

CUPIDO

Quimera!

MARTE

... Da nossa divindade o nome e as tradições,

A lembrança do Olimpo e a vitória...

CUPIDO

Ilusões!

MARTE

Ilusões!

CUPIDO

Terra-a-terra ando agora. Homem sou;

Da minha divindade o tempo já findou.

Mas, que compensações achei no novo estado!

Sou, onde quer que vá pedido e requestado.

Vêm quebrar-se a meus pés os olhares das damas;

Cada gesto que faço ateia imensas chamas.

Sou o encanto da rua e a vida dos salões,

Alfenim procurado, o ímã dos balões,

O perfume melhor da toilette, o elixir

Dos amores que vão, dos amores por vir;

Procuram agradar-me a feia, como a bela;

Sou o sonho querido e doce da donzela,

O encanto da casada, a ilusão da viúva.

A chibata, a luneta, a bota, a capa e a luva

Não são enfeites vãos: suprem o arco e a seta.

Seta e arco são hoje imagens de poeta.

Isto sou. Vede lá se este esbelto rapaz

Não é mais que o menino armado de carcaz.

MARTE

Covarde!

JÚPITER

Deixa, ó filho, este ingrato!

CUPIDO

Adeus.

JÚPITER

Parte.

Adeus!

CUPIDO

Adeus, Vulcano; adeus, Jove; adeus, Marte!



Cena V

VULCANO, JUPITER, MARTE

MARTE

Perdeu-se este rapaz...

VULCANO

Decerto, está perdido!

MARTE

(a Júpiter)

Júpiter, quem dissera! O doce e fiel Cupido

Veio a tornar-se enfim um homem tolo e vão!

VULCANO

(irônico)

E contudo é teu filho...

MARTE

(com desânimo)

É meu filho, ó Plutão!

JÚPITER

(a Vulcano)

Alguém chega. Vai ver.

VULCANO

É Apolo e Proteu.



Cena VI

OS MESMOS, APOLO, PROTEU

APOLO

Bom dia!

MARTE

Onde deixaste o Pégaso?

APOLO

Quem? eu?

Não sabeis? Ora, ouvi a história do animal.

Do que acontece é o mais fenomenal.

Aí vai o caso...

VULCANO

Aposto um raio contra um verso

Que o Pégaso fugiu.

APOLO

Não, senhor; foi diverso

O caso. Ontem à tarde andava eu cavalgando;

Pégaso como sempre, ia caracolando,

E sacudindo a cauda, e levantando as crinas,

Como se recebesse inspirações divinas.

Quase ao cabo da rua um tumulto se dava;

Uma chusma de gente andava e desandava.

O que era não sei. Parei. O imenso povo,

Como se o assombrasse um caso estranho e novo,

Recuava. Quis fugir, não pude. O meu cavalo

Sente naquele instante um horrível abalo;

E para repelir a turba que o molesta,

Levanta o largo pé, fere a um homem na testa.

Da ferida saiu muito sangue e um soneto.

Muita gente acudiu. Mas, conhecido o objeto

Da nova confusão, deu-se nova assuada.

Rodeava-me então uma rapaziada,

Que ao Pégaso beijando os pés, a cauda e as crinas,

Pedia-lhe cantando inspirações divinas.

E cantava, e dizia (erma já de miolo):

"Achamos, aqui está! é este o nosso Apolo!"

Compelido a deixar o Pégaso, desci;

E por não disputar, lá os deixei — fugi.

Mas, já hoje encontrei, em letras garrafais,

Muita ode, e soneto, e oitava nos jornais!

JÚPITER

Mais um!

APOLO

A história é esta.

MARTE

Embora! — Outra desgraça.

Era de lamentar. Esta não.

APOLO

Que chalaça!

Não passa de um corcel...

PROTEU

E já um tanto velho.

APOLO

É verdade.

JÚPITER

Está bem!

PROTEU

(a Júpiter)

A que horas o conselho?

JÚPITER

É à hora em que a lua apontar no horizonte,

E o leão de Neméia, erguendo a larga fronte,

Resplandecer no azul.

PROTEU

A senha é a mesma?

JÚPITER

Não:

"Harpócrates, Minerva — o silêncio, a razão".

APOLO

Muito bem.

JÚPITER

Mas Proteu de senha não carece;

De aspecto e de feições muda, se lhe parece.

Basta vir...

PROTEU

Como um corvo.

MARTE

Um corvo.

PROTEU

Há quatro dias,

Graças ao meu talento e às minhas tropelias,

Iludi meio mundo. Em corvo transformado,

Deixei um grupo imenso absorto, embasbacado.

Vasto queijo pendia ao meu bico sinistro.

Dizem que eu era então a imagem de um ministro.

Seria por ser corvo, ou por trazer um queijo?

Foi uma e outra coisa, ouvi dizer.

JÚPITER

O ensejo

Não é de narrações, e de obras. Vou sair.

Sabem a senha e a hora. Adeus.

(sai)

VULCANO

Vou concluir

Um negócio.

MARTE

Um negócio?

VULCANO

É verdade.

MARTE

Mas qual?

VULCANO

Um projeto de ataque.

MARTE

Eu vou contigo.

VULCANO

É igual

O meu projeto ao teu, mas é completo.

MARTE

Bem.

VULCANO

Adeus, adeus.

PROTEU

Eu vou contigo.

(Saem Vulcano e Proteu.)



Cena VII

MARTE, APOLO

APOLO

O caso tem

Suas complicações, ó Marte! Não me esfria

A força que me dava o néctar e a ambrosia.

No cimo da fortuna ou no chão da desgraça,

Um deus é sempre um deus. Mas, na hora que passa,

Sinto que o nosso esforço é baldado, e imagino

Que ainda não bateu a hora do destino.

Que dizes?

MARTE

Tenho ainda a maior esperança.

Confio em mim, em ti, em vós todos. Alcança

Quem tem força, e vontade, e ânimo robusto.

Espera. Dentro em pouco o templo grande e augusto

Se abrirá para nós.

APOLO

Enfim...

MARTE

A divindade

A poucos caberá, e aquela infinidade

De numes desleais há de fundir-se em nós.

APOLO

Oh! que o destino te ouça a animadora voz!

Quanto a mim...

MARTE

Quanto a ti?

APOLO

Vejo ir-se dispersado

Dos poetas o rebanho, o meu rebanho amado!

Já poetas não são, são homens: carne e osso.

Tomaram neste tempo um ar burguês e insosso.

Depois, surgiu agora um inimigo sério,

Um déspota, um tirano, um Lopez, um Tibério:

O álbum! Sabes tu o que é o álbum? Ouve,

E dize-me se, como este, um bárbaro já houve.

Traja couro da Rússia, ou sândalo, ou veludo;

Tem um ar de sossego e de inocência; é mudo.

Se o vires, cuidarás ver um cordeiro manso,

À sombra de uma faia, em plácido remanso.

A faia existe e chega a sorrir... Estas faias

São copadas também, não têm folhas, têm saias.

O poeta estremece e sente um calafrio;

Mas o álbum lá está, mudo tranqüilo e frio.

Quer fugir, já não pode: o álbum soberano

Tem sede de poesia, é o minotauro. Insano

Quem buscar combater a triste lei comum!

O álbum há de engolir os poetas um por um.

Ah! meus tempos de Homero!

MARTE

A reforma há de vir

Quando o Olimpo outra vez em nossas mãos cair.

Espera!



Cena VIII

OS MESMOS, CUPIDO

CUPIDO

Tio Apolo, é engano de meu pai.

APOLO

Cupido!

MARTE

Tu aqui, meu velhaco?

CUPIDO

Escutai;

Cometeis uma empresa absurda. A humanidade

Já não quer aceitar a vossa divindade.

O bom tempo passou. Tentar vencer hoje, é.

Como agora se diz, remar contra a maré.

Perdeis o tempo.

MARTE

Cala a boca!

CUPIDO

Não! não! não!

Estou disposto a enforcar essa última ilusão.

Sabeis que sou o amor...

APOLO

Foste.

MARTE

És o amor perdido.

CUPIDO

Não, sou ainda o amor, o irmão de Eros, Cupido.

Em vez de conservar domínios ideais,

Soube descer um dia à esfera dos mortais;

Mas o mesmo ainda sou.

MARTE

E depois?

CUPIDO

Ah! não fales,

Ó meu pai! Posso ainda evocar tantos males,

Encher-te o coração de tanto amor ardente,

Que, sem nada mais ver, irás incontinenti,

Pedir dispensa a Jove, e fazer-te homem.

MARTE

Não!

CUPIDO

(indo ao fundo)

Vês ali? é um carro. E no carro? Um balão.

E dentro do balão? uma mulher.

MARTE

Quem é?

CUPIDO

(voltando)

Vênus!

APOLO

Vênus!

MARTE

Embora! É grande a minha fé.

Sou um deus vingador, não sou um deus amante.

É inútil.

APOLO

(batendo no ombro de Cupido)

Meu caro, é inútil.

MARTE

O farfante

Cuida que ainda é o mesmo.

CUPIDO

Está bem.

APOLO

Vai-te embora.

É conselho de amigo.

CUPIDO

(senta-se)

Ah! eu fico!

APOLO

Esta agora!

Que pretendes fazer?

CUPIDO

Ensinar-vos, meu tio.

APOLO

Ensinar-nos a nós? Por Júpiter, eu rio!

CUPIDO

Ouves meu tio, um som, um farfalhar de seda? Vai ver.

APOLO

(indo ver)

É uma mulher. Lá vai pela alameda.

Quem é?

CUPIDO

Juno, a mulher de Júpiter, teu pai.

APOLO

Deveras? É verdade! olha Marte, lá vai.

Não conheci.

CUPIDO

É bela ainda, como outrora,

Bela, e altiva, e grave, e augusta, e senhora.

APOLO

(voltando a si)

Ah! mas eu não arrisco minha divindade...

(a Marte)

Olha o espertalhão!... Que tens?

MARTE

(absorto)

Nada.

CUPIDO

Ó vaidade!

Humana embora, Juno é ainda divina.

APOLO

Que nome usa ela agora?

CUPIDO

Um mais belo: Corina!

APOLO

Marte, sinto... não sei...

MARTE

Eu também.

APOLO

Vou sair.

MARTE

Também eu.

CUPIDO

Também tu?

MARTE

Sim; quero ver... quero ir

Tomar um pouco de ar...

APOLO

Vamos dar um passeio.

MARTE

Ficas?

CUPIDO

Quero ficar, porém, não sei... receio...

MARTE

Fica, já foste um deus, nunca és importuno.

CUPIDO

É deveras assim? Mas...

MARTE

Ah! Vênus!

APOLO

Ah! Juno!



Cena IX

CUPIDO, MERCÚRIO

CUPIDO

(só)

Baleados! Agora os outros. É preciso,

Graças à voz do amor, dar-lhes algum juízo.

Singular exceção! Muitas vezes o amor

Tira o juízo que há... Quem é? Sinto rumor...

Ah! Mercúrio!

MERCÚRIO

Sou eu! E tu? É certo acaso

Que tenhas cometido o mais triste desazo?

Ouvi dizer...

CUPIDO

(em tom lastimoso)

É certo.

MERCÚRIO

Ah! covarde!

CUPIDO

(o mesmo)

Isso! isso!

MERCÚRIO

És homem?

CUPIDO

Sou o amor, sou, e ainda enfeitiço,

Como dantes.

MERCÚRIO

Não és dos nossos. Vai-te!

CUPIDO

Não!

Vou fazer-te, meu tio, uma observação.

MERCÚRIO

Vejamos.

CUPIDO

Quando o Olimpo era nosso...

MERCÚRIO

Ah!

CUPIDO

Havia

Hebe, que nos matava, e a Júpiter servia.

Poucas vezes a viste. As funções de correio

Demoravam-te fora. Ah que olhos! ah que seio!

Ah que fronte! ah...

MERCÚRIO

Então?

CUPIDO

Hebe tornou-se humana.

MERCÚRIO

(com desprezo)

Como tu.

CUPIDO

Ah que, dera! A terra alegre e ufana

Entre as belas mortais deu-lhe um lugar distinto.

MERCÚRIO

Deveras!

CUPIDO

(consigo)

Baleado!

MERCÚRIO

(consigo)

Ah! não sei... mas que sinto?

CUPIDO

Mercúrio, adeus!

MERCÚRIO

Vem cá! Hebe onde está?

CUPIDO

Não sei.

Adeus. Fujo ao conselho.

MERCÚRIO

(absorto)

Ao conselho?

CUPIDO

Farei

Por não atrapalhar as vossas decisões.

Conspirai! Conspirai!

MERCÚRIO

Não sei... Que pulsações!

Que tremor! que tonteira!

CUPIDO

Adeus! Ficas?

MERCÚRIO

Quem? eu?

Hebe?

CUPIDO

(à parte)

Falta-me Jove, e Vulcano, e Proteu.



Cena X

MERCÚRIO, DEPOIS MARTE, APOLO

MERCÚRIO

(só)

Eu doente? de quê? É singular!

(indo ao vinho)

Um gole!

Não há vinho nenhum que uma dor não console.

(bebe silencioso)

Hebe tornou-se humana!

MARTE

(a Apolo)

É Mercúrio.

APOLO

(a Marte)

Medita!

Em que será?

MARTE

Não sei.

MERCÚRIO

(sem vê-los)

Oh! como me palpita

O coração!

APOLO

(a Mercúrio)

Que é isso?

MERCÚRIO

Ah! não sei... divagava...

Como custa a passar o tempo! Eu precisava

De sair e não sei... Jove não voltará?

MARTE

Por que não? Há de vir.

APOLO

(consigo)

Que é isso?

(silêncio profundo)

Estou disposto!

MARTE

Estou disposto!

MERCÚRIO

Estou disposto!



Cena XI

OS MESMOS, JÚPITER

JÚPITER

Minha filha, boa nova!

(os três voltam a cara)

Então? voltais-me o rosto?

MERCÚRIO

Nós, meu pai?

APOLO

Eu, meu pai?

MARTE

Eu não...

JÚPITER

Vós todos, sim!

Ah! fraqueais talvez! Um espírito ruim

Penetrou entre nós, e a todos vós tentando

Da vanguarda do céu vos anda separando.

MARTE

Oh! não, porém...

JÚPITER

Porém?

MARTE

Eu falarei mais claro

No conselho.

JÚPITER

Ah! E tu?

APOLO

Eu o mesmo declaro.

JÚPITER

(a Mercúrio)

Tua declaração?

MERCÚRIO

É do mesmo teor.

JÚPITER

Ó trezentos de Esparta! Ó tempos de valor!

Eram homens contudo...

APOLO

Isso mesmo: é humano.

Era a força do persa e a força do espartano.

Eram homens de um lado, e homens do outro lado;

A terra sob os pés; o conflito igualado.

Agora o caso é outro. Os deuses demitidos

Buscam reconquistar os domínios perdidos.

Há deuses do outro lado? Há homens. Neste caso

Não teremos a luta em campo aberto e raso.

JÚPITER

Assim, pois?

APOLO

Assim, pois, já que os homens não podem

Aos deuses elevar-se, os deuses se acomodem.

Sejam homens também.

MARTE

Apoiado!

MERCÚRIO

Apoiado!

JÚPITER

Durmo ou velo? Que ouvi!

MARTE

O caso é desgraçado.

Mas a verdade é esta, esta e não outra.

JÚPITER

Assim

Desmantela-se o Olimpo!

MERCÚRIO

Espírito ruim

Não há, nem há fraqueza, ou triste covardia.

Há desejo real de concluir um dia

Esta luta cruel, estéril, sem proveito.

Deste real desejo, é este, ó pai, o efeito.

JÚPITER

Estou perdido!



Cena XII

OS MESMOS, VULCANO, PROTEU

JÚPITER

Ah! vinde, ó Vulcano, ó Proteu!

Estes três já não são nossos.

VULCANO

Nem eu.

PROTEU

Nem eu.

JÚPITER

Também vós?

PROTEU

Também nós!

JÚPITER

Recuais?

VULCANO

Recuamos.

Com os homens, enfim, nos reconciliamos.

JÚPITER

Fico eu só?

MARTE

Não, meu pai. Segue o geral exemplo.

É inútil resistir; o velho e antigo templo

Para sempre caiu, não se levanta mais.

Desçamos a tomar lugar entre os mortais.

É nobre: um deus que despe a auréola divina.

Sê homem!

JÚPITER

Não! não! não!

APOLO

O tempo nos ensina

Que devemos ceder.

JÚPITER

Pois sim, mas tu, mas vós,

Eu não. Guardarei só um século feroz

A honra da divindade e o nosso lustre antigo,

Embora sem amparo, embora sem abrigo.

(a Apolo,com sarcasmo)

Tu, Apolo, vais ser pastor do rei Admeto?

Imolas ao cajado a glória do soneto?

Que honra!

APOLO

Não, meu pai, sou o rei da poesia.

Devo ter um lugar no mundo, em harmonia

Com este que ocupei no nosso antigo mundo.

O meu ar sobranceiro, o meu olhar profundo,

A feroz gravidade e a distinção perfeita,

Nada, meu caro pai, ao vulgo se sujeita.

Quero um lugar distinto, alto, acatado e sério.

Co’a pena da verdade e a tinta do critério

Darei as leis do belo e do gosto. Serei

O supremo juiz, o crítico.

JÚPITER

Não sei

Se lava o novo ofício a vilta de infiel...

APOLO

Lava.

JÚPITER

E tu, Marte?

MARTE

Eu cedo à guerra de papel.

Sou o mesmo; somente o meu valor antigo

Mudou de aplicação. Corro ainda ao perigo,

Mas não já com a espada: a pena é minha escolha.

Em vez de usar broquel, vou fundar uma folha.

Dividirei a espada em leves estiletes,

Com eles abrirei campanhas aos gabinetes.

Moral, religião, política, poesia,

De tudo falarei com alma e bizarria.

Perdoa-me, ó papel, os meus erros de outrora,

Tarde os reconheci, mas abraço-te agora!

Cumpre-me ser, meu pai, de coração fiel,

Cidadão do papel, no tempo do papel.

JÚPITER

E contudo, inda há pouco, o contrário dizias,

E zombavas então destas papelarias...

MARTE

Mudei de opinião...

JÚPITER

(a Vulcano)

E tu, ó deus das lavas,

Tu, que o raio divino outrora fabricavas.

Que irás tu fabricar?

VULCANO

Inda há pouco o dizia

Quando Marte do tempo a pintura fazia:

Se o valor deste tempo é de peso ou de almaço,

Mudo de profissão, vou fazer penas de aço.

Hei de servir alguém, aqui ou em qualquer parte,

Ou a ti ou a outro, ou a Jove ou a Marte.

Os raios que eu fazia, em penas transformados,

Como eles hão de ser ferinos e aguçados.

A questão é de forma.

MARTE

(a Vulcano)

Obrigado.

JÚPITER

Proteu,

Não te dignas dizer o que farás?

PROTEU

Quem? Eu?

Farei o que puder; e creio que me é dado

Fazer muito: o caso é que eu seja utilizado.

O dom de transformar-me, à vontade, a meu gosto

Torna-me neste mundo um singular composto.

Vou ter segura a vida e o futuro. O talento

Está em não mostrar a mesma cara ao vento.

Vermelho de manhã, sou de tarde amarelo;

Se convier, sou bigorna, e se não, sou martelo.

Já se vê, sem mudar de nome. Neste mundo

A forma é essencial, vale de pouco o fundo.

Vai o tempo chuvoso? Envergo um casacão.

Volta o sol? Tomo logo a roupa de verão.

Quem subiu? Pedro e Paulo. Ah! que grandes talentos!

Que glórias nacionais! que famosos portentos!

O país ia à garra e por triste caminho,

Se inda fosse o poder de Sancho ou de Martinho.

Mas se a cena mudar, tão contente e tão ancho,

Dou vivas a Martinho, e dou vivas a Sancho!

Aprendi ó meu pai, estas coisas, e juro

Que vou ter grande e belo um nome no futuro.

Não há revoluções, não há poder humano

Que me façam cair...

(com ênfase)

O povo é soberano.

A pátria tem direito ao nosso sacrifício.

Vê-la sem este jus... mil vezes o suplício!

(voltando ao natural)

Deste modo, meu pai, mudando a fala e a cara,

Sou na essência Proteu, na forma Dulcamara...

De tão bom proceder tenho as lições diurnas.

Boa tarde!

JÚPITER

Onde vais?

PROTEU

Levar meu nome às urnas!

JÚPITER

(reparando, a todos)

Vêm cá. Ouvi agora... Ah! Mercúrio...

MERCÚRIO

Eu receio

Perder estas funções que exerço de correio...

Mas...

Cena XIII

OS MESMOS, CUPIDO

CUPIDO

Cupido aparece e resolve a questão.

Ficas ao meu serviço.

JÚPITER

Ah!

MERCÚRIO

Em que condição?

CUPIDO

Eu sou o amor, tu és correio.

MERCÚRIO

Não, senhor.

Sabes o que é andar ao serviço de amor,

Sentir junto à beleza a paixão da beleza,

O peito sufocado, a fantasia acesa,

E as vozes transmitir do amante à sua amada,

Como um correio, um eco, um sobrescrito, um nada?

Foste um deus como eu fui, como eu, nem mais nem menos.

Homens, somos iguais. Um dia, Marte e Vênus,

A quem Vulcano armara urna rede, apanhados

Nos desmaios do amor, se foram libertados,

Se puderam fugir às garras do marido,

Foi graças à destreza, ao tino conhecido,

Do ligeiro Mercúrio. Ah que serviço aquele!

Sem mim quem te quisera, ó Marte, estar na pele!

Chega a hora; venceu-se a letra. És meu amigo.

Salva-me agora tu, e leva-me contigo.

MARTE

Vem comigo; entrarás na política escura.

Proteu há de arranjar-te uma candidatura.

Falarei na gazeta aos graves eleitores,

E direi quem tu és quem foram teus maiores.

Confia e vencerás. Que vitória e que festa!

Da tua vida nova a política... é esta:

Da rua ao gabinete, e do paco ao tugtirio,

Farás o teu papel, o papel de Mercúrio;

O segredo ouvirás sem guardar o segredo.

A escola mais rendosa é a escola do enredo.

MERCÚRIO

Sou o deus da eloqüência: o emprego é adequado.

Verás como hei de ser na intriga e no recado.

Aceito a posição e as promessas...

CUPIDO

Agora,

Que a tua grande estrela, erma no céu, descora,

Que pretendes fazer, ó Júpiter divino?

JÚPITER

Tiro desta derrota o necessário ensino.

Fico só, lutarei sozinho e eternamente.

CUPIDO

Contra os tempos, e só, lutas inutilmente.

Melhor fora ceder e acompanhar os mais,

Ocupando um lugar na linha dos mortais.

JÚPITER

Ah! se um dia vencer, contra todos e tudo,

Hei de ser lá no Olimpo um Júpiter sanhudo!

CUPIDO

Contra a suprema raiva e a cólera maior

Põe água na fervura uma dose de amor.

Não te lembras? Outrora, em touro transformado,

Não fizeste de Europa o rapto celebrado?

Em te dando a veneta, em cisne te fazia.

Tinhas um novo amor? Chuva de ouro caías...

JÚPITER

(mais terno)

Ah! bom tempo!

CUPIDO

E contudo à flama soberana

Uma deusa escapou, entre outras — foi Diana.

JÚPITER

Diana!

CUPIDO

Sim, Diana, a esbelta caçadora;

Uma só vez deixou que a flama assoladora

O peito lhe queimasse — e foi Endimião

Que o segredo lhe achou do feroz coração.

JÚPITER

Ainda caça, talvez?

CUPIDO

Caça, mas não veados:

Os novos animais chamam-se namorados.

JÚPITER

É formosa? É ligeira?

CUPIDO

É ligeira, é formosa!

É a beleza em flor, doce e misteriosa;

Deusa, sendo mortal, divina sendo humana.

Melhor que ela só Juno.

APOLO

Hein?... Ah! Juno!

JÚPITER

(cismando)

Ah! Diana!

MERCÚRIO

Cede, ó Jove. Não vês que te pedimos todos?

Neste mundo acharás por diferentes modos,

Belezas a vencer, vontades a quebrar,

—Toda a conjugação do grande verbo amar.

Sim, o mundo caminha, o mundo é progressista:

Mas não muda uma coisa: é sempre sensualista.

Não serás, por formar teu nobre senhorio,

Nem cisne ou chuva de ouro, e nem touro bravio.

Uma te encanta, e logo a tua voz divina

Sem mudar de feições, podes ser... crinolina.

De outra soube-te encher o namorado olhar:

Usa do teu poder, e manda-lhe um colar.

A Costança uma luva, Ermelinda um colete,

Adelaide um chapéu, Luísa um bracelete.

E assim, sempre curvado à influência do amor,

Como outrora, serás Jove namorador!

CUPIDO

(batendo-lhe no ombro)

Que pensas, meu avô?

JÚPITER

Escuta-me, Cupido.

Este mundo não é tão mau, nem tão perdido,

Como dizem alguns. Cuidas que a divindade

Não se desonrará passando à humanidade?

CUPIDO

Não me vês?

JÚPITER

É verdade. E, se todos passaram,

Muita coisa de bom nos homens encontraram.

CUPIDO

Nos homens, é verdade, e também nas mulheres.

JÚPITER

Ah! dize-me, inda são a fonte dos prazeres?

CUPIDO

São.

JÚPITER

(absorto)

Mulheres! Diana!

MARTE

Adeus, meu pai!

OS OUTROS

Adeus!

JÚPITER

Então já? Que é lá isso? Onde ides, filhos meus?

APOLO

Somos homens.

JÚPITER

Ah! Sim...

CUPIDO

(aos outros)

Baleado!

JÚPITER

(com um suspiro)

Ide lá!

Adeus.

OS OUTROS

(menos Cupido)

Adeus, meu pai.

(Silêncio.)

JÚPITER

(depois de refletir)

Também sou homem.

TODOS

Ah!

JÚPITER

(decidido)

Também sou homem, sou; vou convosco. O costume

Meio homem já me fez, já me fez meio nume.

Serei homem completo, e fico ao vosso lado

Mostrando sobre a terra o Olimpo humanizado.

MERCÚRIO

Graças, meu pai!

CUPIDO

Venci!

MARTE

(a Júpiter)

A tua profissão?

APOLO

Deve ser elevada e nobre, uma função

Própria, digna de ti, como do Olimpo inteiro.

Qual será?

JÚPITER

Dize lá.

CUPIDO

(a Júpiter)

Pensa!

JÚPITER

(depois de refletir)

Vou ser banqueiro!

(Fazem alas. O Epílogo atravessa do fundo e vem ao

proscênio.)

EPÍLOGO

Boa noite. Sou eu, o Epílogo. Mudei

O nome. Abri a peça, a peça fecharei.

O autor, arrependido, oculto, envergonhado,

Manda pedir desculpa ao público ilustrado;

E jura, se cair desta vez, nunca mais

Meter-se em lutas vãs de numes e mortais.

Pede ainda o poeta um reparo. O poeta

Não comunga por si na palavra indiscreta

De Marte ou de Proteu, de Apolo ou de Cupido.

Cada qual fala aqui como um deus demitido;

É natural da inveja; e a idéia do autor

Não pode conformar-se a tão fundo rancor.

Sim, não pode; e, contudo, ama aos deuses, adora

Essas lindas ficções do bom tempo de outrora.

Inda os crê presidindo aos mistérios sombrios,

No recesso e no altar dos bosques e dos rios.

Às vezes cuida ver atravessando as salas,

A soberana Juno, a valorosa Palas;

A crença é que o arrasta, a crença é que o ilude

Neste reverdecer da eterna juventude.

Se o tempo sepultou Eros, Minerva, e Marte,

Uma coisa os revive e os santifica: a arte.

Se a história os dispersou, se o Calvário os baniu,

A arte, no mesmo amplexo, a todos reuniu.

De duas tradições a musa fez só uma:

David olhando em face a sibila de Cuma.

Se vos não desagrada o que se disse aqui,

Sexo amável, e tu, sexo forte, aplaudi.

NOTA

O antepenúltimo verso que o Epílogo recita:

David olhando em face a sibila de Cuma.

é tradução de um verso, com que o marquês de Belloy fecha um dos seus belos sonetos:

En regard de David la sibylle de Cume,

o qual é paráfrase daquele hino da Igreja:

Teste David cum sibylla.

FIM

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