domingo, 2 de maio de 2010

Lição de Botânica - Teatro de Machado de Assis

Publicado originalmente em Relíquias de Casa Velha,
Rio de Janeiro: Editora Garnier, 1906.

PERSONAGENS

D. Helena
D. Leonor
D. Cecília
Barão Segismundo de Kernoberg

Lugar da cena: Andaraí

ATO ÚNICO
Sala em casa de D. Leonor. Portas ao fundo, uma à direita do espectador



CENA I

D. Leonor, D. Helena, D. Cecília

D. Leonor entra, lendo uma carta, D. Helena e D. Cecília entram no fundo.

D. HELENA — Já de volta!

D. CECÍLIA (a D. Helena, depois de um silêncio) — Será alguma carta de namoro?

D. HELENA (Baixo) — Criança!

D. LEONOR — Não me explicarão isto?

D. HELENA — Que é?

D. LEONOR — Recebi ao descer do carro este bilhete: "Minha senhora. Permita que o mais respeitoso vizinho lhe peça dez minutos de atenção. Vai nisto um grande interesse da ciência". Que tenho eu com a ciência?

D. HELENA — Mas de quem é a carta?

D. LEONOR — Do Barão Sigismundo de Kernoberg.

D. CECÍLIA — Ah! o tio de Henrique!

D. LEONOR — De Henrique! Que familiaridade é essa?

D. CECÍLIA — Titia, eu...

D. LEONOR Eu que?... Henrique!

D. HELENA — Foi uma maneira de falar na ausência. Com que então o Sr. Barão Sigismundo de Kernoberg pede-lhe dez minutos de atenção, em nome e por amor da ciência. Da parte de um botânico é por força alguma égloga.

D. LEONOR — Seja o que for, não sei se deva receber um senhor a quem nunca vimos. Já o viram alguma vez?

D. CECÍLIA — Eu nunca.

D. HELENA — Nem eu.

D. LEONOR — Botânico e sueco: duas razões para ser gravemente aborrecido. Nada, não estou em casa.

D. CECÍLIA — Mas, quem sabe, titia, se ele quer pedir-lhe... sim... um exame no nosso jardim?

D. LEONOR — Há por todo esse Andaraí muito jardim para examinar.

D. HELENA — Não, senhora, há de recebê-lo.

D. LEONOR — Por que?

D. HELENA — Porque é nosso vizinho, porque tem necessidade de falar-lhe, e, enfim, porque, a julgar pelo sobrinho, deve ser um homem distinto.

D. LEONOR — Não me lembrava do sobrinho. Vá lá; aturemos o botânico. (Sai pela porta do fundo, à esquerda).





CENA II

D. HELENA, D. CECÍLIA

D. HELENA – Não me agradece?

D. CECÍLIA — O que?

D. HELENA — Sonsa! Pois não adivinhas o que vem cá fazer o Barão?

D. CECÍLIA — Não.

D. HELENA — Vem pedir a tua mão para o sobrinho.

D. CECÍLIA — Helena!

D. HELENA (imitando-a) — Helena!

D. CECÍLIA — Juro...

D. HELENA — Que o não amas.

D. CECÍLIA — Não é isso.

D. HELENA — Que o amas?

D. CECÍLIA — Também não.

D. HELENA — Mau! Alguma coisa há de ser. Il faut qu'une porte soit ouverte ou fermée. Porta neste caso é coração. O teu coração há de estar fechado ou aberto...

D. CECÍLIA — Perdi a chave.

D. HELENA (rindo) — E não o podes fechar outra vez. São assim todos os corações ao pé de todos os Henriques. O teu Henrique viu a porta aberta, e tomou posse do lugar. Não escolheste mal, não; é um bonito rapaz.

D. CECÍLIA — Oh! uns olhos!

D. HELENA — Azuis.

D. CECÍLIA — Como o céu.

D. HELENA — Louro...

D. CECÍLIA — Elegante...

D. HELENA — Espirituoso...

D. CECÍLIA — E bom...

D. HELENA — Uma pérola... (Suspira). Ah!

D. CECÍLIA — Suspiras?

D. HELENA — Que há de fazer uma viúva falando... de uma pérola?

D. CECÍLIA — Oh! tens naturalmente em vista algum diamante de primeira grandeza.

D. HELENA — Não tenho, não; meu coração já não quer jóias.

D. CECÍLIA — Mas as jóias querem o teu coração.

D. HELENA — Tanto pior para elas: hão de ficar em casa do joalheiro.

D. CECÍLIA — Veremos isso. (Sobe). Ah!

D. HELENA — Que é?

D. CECÍLIA (olhando para a direita) — Um homem desconhecido que lá vem; há de ser o Barão.

D. HELENA — Vou avisar titia. (Sai pelo fundo, à esquerda).





CENA III

D. Cecília, Barão

D. CECÍLIA — Será deveras ele? Estou trêmula... Henrique não me avisou de nada... Virá pedir-me?... Mas, não, não, não pode ser... Tão moço?... (O Barão aparece).

BARÃO (á porta, depois de profunda cortesia) — Creio que a Excelentíssima Senhora D. Leonor Gouvêa recebeu uma carta... Vim sem esperar a resposta.

D. CECÍLIA — É o Sr. Barão Sigismundo de Kernoberg? (O Barão faz um gesto afirmativo). Recebeu. Queira entrar e sentar-se. (À parte). Devo estar vermelha...

BARÃO (á parte, olhando para Cecília) — Há de ser esta.

D. CECÍLIA (á parte) — E titia não vem... Que demora!... Não sei que lhe diga... estou tão vexada... (O Barão tira um livro da algibeira e folheia-o). Se eu pudesse deixá-lo... É o que vou fazer. (Sobe).

BARÃO (fechando o livro e erguendo-se) — V. Excia. há de desculpar-me. Recebi hoje mesmo este livro da Europa; é obra que vai fazer revolução na ciência; nada menos que uma monografia das gramíneas, premiadas pela Academia de Estocolmo.

D. CECÍLIA — Sim? (À parte) Aturemo-lo, pode vir a ser meu tio.

BARÃO — As gramíneas têm ou não têm perianto? A principio adotou-se a negativa, posteriormente... V. Excia. talvez não conheça é o que é o perianto..

D. CECÍLIA — Não, senhor.

BARÃO — Perianto compõe-se de duas palavras gregas: peri, em volta, e anthos, flor.

D. CECÍLIA — O invólucro da flor.

BARÃO — Acertou. É o que vulgarmente se chama cálix. Pois as gramíneas eram tidas... (Aparece D. Leonor ao fundo). Ah!





CENA IV

Os mesmos, D. Leonor

D. LEONOR — Desejava falar-me?

BARÃO — Se me dá essa honra. Vim sem esperar resposta à minha carta. Dez minutos apenas.

D. LEONOR — Estou às suas ordens.

D. CECÍLIA — Com licença. (À parte, olhando para o céu). Ah! minha Nossa Senhora! (Retira-se pelo fundo).




CENA V

D. Leonor, Barão

(D. Leonor senta-se, fazendo um gesto ao Barão, que a imita).

BARÃO — Sou o Barão Sigismundo de Kernoberg, seu vizinho, botânico de vocação, profissão e tradição, membro da Academia de Estocolmo e comissionado pelo governo da Suécia para estudar a flora da América do Sul. V. Excia. dispensa a minha biografia? (D. Leonor faz um gesto afirmativo). Direi somente que o tio de meu tio foi botânico, meu tio botânico, eu botânico, e meu sobrinho há de ser botânico. Todos somos botânicos de tios a sobrinhos. Isto de algum modo explica minha vinda a esta casa.

D. LEONOR — Oh! o meu jardim é composto de plantas vulgares.

BARÃO (gracioso) — É porque as melhores flores da casa estão dentro de casa. Mas V. Excia. engana-se; não venho pedir nada do seu jardim.

D. LEONOR — Ah!

BARÃO — Venho pedir-lhe uma coisa que lhe há de parecer singular.

D. LEONOR — Fale.

BARÃO — O padre desposa a igreja; eu desposei a ciência. Saber é o meu estado conjugal; os livros são a minha família. Numa palavra, fiz voto de celibato.

D. LEONOR — Não se case.

BARÃO — Justamente. Mas, V. Excia. compreende que, sendo para mim ponto de fé que a ciência não se dá bem com o matrimonio, nem eu devo casar, nem... Vossa Excia. já percebeu.

D. LEONOR — Coisa nenhuma.

BARÃO — Meu sobrinho Henrique anda estudando comigo os elementos da botânica. Tem talento, há de vir a ser um luminar da ciência. Se o casamos, está perdido.

D. LEONOR — Mas...

BARÃO (á parte) — Não entendeu. (Alto). Sou obrigado a ser mais franco. Henrique anda apaixonado por uma de suas sobrinhas, creio que esta que saiu daqui, há pouco. Impus-lhe que não voltasse a esta casa; ele resistiu-me. Só me resta um meio: é que V. Excia. lhefeche a porta.

D. LEONOR — Senhor Barão!

BARÃO — Admira-se do pedido? Creio que não é polido nem conveniente. Mas é necessário, minha senhora, é indispensável. A ciência precisa de mais um obreiro: não o encadeiemos no matrimônio.

D. LEONOR — Não sei se devo sorrir do pedido...

BARÃO — Deve sorrir, sorrir e fechar-nos a porta. Terá os meus agradecimentos e as bênçãos da posteridade.

D. LEONOR — Não é preciso tanto; posso fechá-la de graça.

BARÃO — Justo. O verdadeiro benefício é gratuito.

D. LEONOR — Antes, porém, de nos despedirmos, desejava dizer uma coisa e perguntar outra. (O Barão curva-se). Direi primeiramente que ignoro se há tal paixão da parte de seu sobrinho; em segundo lugar, perguntarei se na Suécia estes pedidos são usuais.

BARÃO — Na geografia intelectual não há Suécia nem Brasil; os países são outros: astronomia, geologia, matemáticas; na botânica são obrigatórios.

D. LEONOR — Todavia, à força de andar com flores... deviam os botânicos trazê-las consigo.

BARÃO — Ficam no gabinete.

D. LEONOR — Trazem os espinhos somente.

BARÃO — V. Excia. tem espírito. Compreendo a afeição de Henrique a esta casa. (Levanta-se). Promete-me então...

D. LEONOR (levantando-se) — Que faria no meu caso?

BARÃO — Recusava.

D. LEONOR — Com prejuízo da ciência?

BARÃO — Não, porque nesse caso a ciência mudaria de acampamento, isto é, o vizinho prejudicado escolheria outro bairro para seus estudos.

D. LEONOR — Não lhe parece que era melhor ter feito isso mesmo, antes de arriscar um pedido ineficaz?

BARÃO — Quis primeiro tentar fortuna.





CENA VI

D. Leonor, Barão, D. Helena

D. HELENA (entra e para) — Ah!

D. LEONOR — Entra, não é assunto reservado. O Sr. Barão de Kernoberg... (Ao Barão) É minha sobrinha Helena. (À Helena) Aqui o Sr.Barão vem pedir que o não perturbemos no estudo da botânica. Diz que o seu sobrinho Henrique está destinado a um lugar honroso na ciência, e... conclua, Sr. Barão.

BARÃO — Não convém que se case, a ciência exige o celibato.

D. LEONOR — Ouviste?

D. HELENA — Não compreendo...

BARÃO — Uma paixão louca de meu sobrinho pode impedir que... Minhas senhoras, não desejo roubar-lhes mais tempo... Confio em V.Excia., minha senhora... Ser-lhe-ei eternamente grato. Minhas senhoras. (Faz uma grande cortesia e sai).





CENA VII
D. Helena, D. Leonor

D. LEONOR (rindo) — Que urso!

D. HELENA — Realmente...

D. LEONOR — Perdôo-lhe em nome da ciência. Fique com as suas ervas, e não nos aborreça mais, nem ele nem o sobrinho.

D. HELENA Nem o sobrinho?

D. LEONOR — Nem o sobrinho, nem o criado, nem o cão, se o houver, nem coisa nenhuma que tenha relação com a ciência. Enfada-te? Pelo que vejo, entre o Henrique e a Cecília há tal ou qual namoro?

D. HELENA — Se promete segredo... há.

D. LEONOR — Pois acabe-se o namoro.

D. HELENA — Não é fácil. O Henrique é um perfeito cavalheiro; ambos são dignos um do outro. Por que razão impediremos que dois corações...

D. LEONOR — Não sei de corações, não hão de faltar casamentos a Cecília.

D. HELENA — Certamente que não, mas os casamentos não se improvisam nem se projetam na cabeça; são atos do coração, que a igreja santifica. Tentemos uma coisa.

D. LEONOR — Que é?

D. HELENA — Reconciliemo-nos com o Barão.

D. LEONOR — Nada, nada.

D. HELENA — Pobre Cecília!

D. LEONOR — É ter paciência, sujeite-se às circunstâncias... (A D. Cecília, que entra) Ouviste?

D. CECÍLIA — O que, titia?

D. LEONOR — Helena te explicará tudo. (A D. Helena, baixo). Tira-lhe todas as esperanças. (Indo-se). Que urso! que urso!





CENA VIII

D. Helena, D. Cecília

D. CECÍLIA — Que aconteceu?

D. HELENA — Aconteceu... (Olha com tristeza para ela).

D. CECÍLIA — Acaba.

D. HELENA — Pobre Cecília!

D. CECÍLIA — Titia recusou a minha mão?

D. HELENA — Qual! O Barão é que se opõe ao casamento.

D. CECÍLIA — Opõe-se!

D. HELENA Diz que a ciência exige o celibato do sobrinho. (D. Cecília encosta-se a uma cadeira). Mas, sossega; nem tudo está perdido; pode ser que o tempo...

D. CECÍLIA — Mas quem impede que ele estude?

D. HELENA — Mania de sábio. Ou então, evasiva do sobrinho.

D. CECÍLIA Oh! não! é impossível; Henrique é uma alma angélica! Respondo por ele. Há de certamente opor-se a semelhante exigência...

D. HELENA — Não convém precipitar as coisas. O Barão pode zangar-se e ir-se embora.

D. CECÍLIA — Que devo então fazer?

D. HELENA — Esperar. Há tempo para tudo.

D. CECÍLIA — Pois bem, quando Henrique vier...

D. HELENA — Não vem, titia resolveu fechar a porta a ambos.

D. CECÍLIA — Impossível!

D. HELENA — Pura verdade. Foi uma exigência do Barão.

D. CECÍLIA — Ah! conspiram todos contra mim. (Põe as mãos na cabeça). Sou muito infeliz! Que mal fiz eu a essa gente? Helena,salva-me! Ou eu mato-me! Anda, vê se descobres um meio...

D. HELENA (indo sentar-se) — Que meio?

D. CECÍLIA (acompanhando-a) — Um meio qualquer que não nos separe!

D. HELENA — Há um.

D. CECÍLIA — Qual? Dize.

D. HELENA — Casar.

D. CECÍLIA — Oh! não zombes de mim! Tu também amaste, Helena; deves respeitar estas angustias. Não tornar a ver o meu Henrique é uma idéia intolerável. Anda, minha irmãzinha. (Ajoelha-se inclinando o corpo sobre o regaço de D. Helena). Salva-me! És tão inteligente, que hás de achar por força alguma idéia; anda, pensa !

D. HELENA (beijando-lhe a testa) -Criança! supões que seja tão fácil assim?

D. CECÍLIA — Para ti há de ser fácil.

D. HELENA — Lisonjeira! (Pega maquinalmente no livro deixado pelo Barão sobre a cadeira). A boa vontade não pode tudo; é preciso... (Tem aberto o livro). Que livro é este?... Ah! talvez do Barão.

D. CECÍLIA — Mas vamos... continua.

D. HELENA — Isto há de ser sueco... trata talvez de botânica. Sabes sueco?

D. CECÍLIA — Helena!

D. HELENA — Quem sabe se este livro pode salvar tudo? (Depois de um instante de reflexão). Sim, é possível. Tratará de botânica?

D. CECÍLIA — Trata.

D. HELENA — Quem te disse?

D. CECÍLIA — Ouvi dizer ao Barão, trata das...

D. HELENA — Das...

D. CECÍLIA — Das gramíneas?

D. HELENA — Só das gramíneas?

D. CECÍLIA — Não sei; foi premiado pela Academia de Estocolmo.

D. HELENA — De Estocolmo. Bem. (Levanta-se).

D. CECÍLIA (levantando-se) — Mas que é?

D. HELENA — Vou mandar-lhe o livro...

D. CECÍLIA — Que mais?

D. HELENA — Com um bilhete.

D. CECÍLIA (olhando para a direita) Não é preciso; lá vem ele.

D. HELENA — Ah!

D. CECÍLIA — Que vais fazer?

D. HELENA — Dar-lhe o livro.

D. CECÍLIA — O livro, e...

D. HELENA — E as despedidas.

D. CECÍLIA — Não compreendo.

D. HELENA — Espera e verás.

D. CECÍLIA — Não posso encara-lo; adeus.

D. HELENA — Cecília! (D. Cecília sai).





CENA IX

D. HELENA, BARÃO

BARÃO (á porta) — Perdão, minha senhora; eu trazia um livro há pouco...

D. HELENA (com o livro na mão) — Será este?

BARÃO (caminhando para ela) — Justamente.

D. HELENA — Escrito em sueco, penso eu...

BARÃO — Em sueco.

D. HELENA — Trata naturalmente de botânica.

BARÃO — Das gramíneas.

D. HELENA (com interesse) — Das gramíneas!

BARÃO — De que se espanta?

D. HELENA — Um livro publicado...

BARÃO — Ha quatro meses.

D. HELENA — Premiado pela Academia de Estocolmo?

BARÃO (admirado) — É verdade. Mas...

D. HELENA — Que pena que eu não saiba sueco!

BARÃO — Tinha noticia do livro?

D. HELENA — Certamente. Ando ansiosa por lê-lo.

BARÃO — Perdão, minha senhora. Sabe botânica?

D. HELENA — Não ouso dizer que sim, estudo alguma coisa; leio quando posso. É ciência profunda e encantadora.

BARÃO (com calor) — É a primeira de todas.

D. HELENA — Não me atrevo a apóia-lo, porque nada sei das outras, e poucas luzes tenho de botânica, apenas as que pode dar um estudo solitário e deficiente. Se a vontade suprisse o talento...

BARÃO — Por que não? Le génie, c'est la patience, dizia Buffon.

D. HELENA (sentando-se) — Nem sempre.

BARÃO — Realmente, estava longe de supor, que, tão perto de mim, uma pessoa tão distinta dava algumas horas vagas ao estudo da minha bela ciência.

D. HELENA — Da sua esposa.

BARÃO (sentando) — É verdade. Um marido pode perder a mulher, e se a amar deveras, nada a compensará neste mundo, ao passo que a ciência não morre... Morremos nós, ela sobrevive com todas as graças do primeiro dia, ou ainda maiores, porque cada descoberta é um encanto novo.

D. HELENA — Oh! tem razão!

BARÃO — Mas, diga-me V. Excia.: tem feito estudo especial das gramíneas?

D. HELENA — Por alto... por alto...

BARÃO — Contudo, sabe que a opinião dos sábios não admitia o perianto... (D. Helena faz sinal afirmativo). Posteriormente reconheceu-se a existência do perianto. (Novo gesto de D. Helena). Pois este livro refuta a segunda opinião.

D. HELENA — Refuta o perianto?

BARÃO — Completamente.

D. HELENA — Acho temeridade.

BARÃO — Também eu supunha isso... Li-o, porém, e a demonstração é claríssima. Tenho pena que não possa lê-lo. Se me dá licença, farei uma tradução portuguesa e daqui a duas semanas...

D. HELENA — Não sei se deva aceitar...

BARÃO — Aceite; é o primeiro passo para me não recusar segundo pedido.

D. HELENA — Qual?

BARÃO — Que me deixe acompanhá-la em seus estudos, repartir o pão do saber com V. Excia. É a primeira vez que a fortuna me depara uma discípula. Discípula é, talvez, ousadia da minha parte...

D. HELENA — Ousadia, não; eu sei muito pouco; posso dizer que não sei nada.

BARÃO — A modéstia é o aroma do talento, como o talento é o esplendor da graça. V. Excia. possui tudo isso. Posso compará-la à violeta, — Viola odorata de Lineu, — que é formosa e recatada...

D. HELENA (interrompendo) — Pedirei licença à minha tia. Quando será a primeira lição?

BARÃO — Quando quiser. Pode ser amanhã. Tem certamente notícia da anatomia vegetal.

D. HELENA — Notícia incompleta.

BARÃO — Da fisiologia?

D. HELENA — Um pouco menos.

BARÃO — Nesse caso, nem a taxonomia, nem a fitografia...

D. HELENA — Não fui até lá.

BARÃO — Mas há de ir... Verá que mundos novos se lhe abrem diante do espírito. Estudaremos, uma por uma, todas as famílias, as orquídeas, as jasmíneas, as rubiáceas, as oleáceas, as narcíseas, as umbelíferas, as...

D. HELENA — Tudo, desde que se trata de flores.

BARÃO — Compreendo: amor de família.

D. HELENA — Bravo! um cumprimento!

BARÃO (folheando o livro) — A ciência os permite.

D. HELENA (à parte) — O mestre é perigoso. (Alto). Tinham-me dito exatamente o contrário; disseram-me que o Sr. Barão era... nãosei como diga... era...

BARÃO — Talvez um urso.

D. HELENA — Pouco mais ou menos.

BARÃO — E sou.

D. HELENA — Não creio.

BARÃO — Por que não crê?

D. HELENA — Porque o vejo amável.

BARÃO — Suportável apenas.

D. HELENA — Demais, imaginava-o uma figura muito diferente, um velho macilento, melenas caídas, olhos encovados.

BARÃO — Estou velho, minha senhora.

D. HELENA — Trinta e seis anos.

BARÃO — Trinta e nove.

D. HELENA — Plena mocidade.

BARÃO — Velho para o mundo. Que posso eu dar ao mundo senão a minha prosa científica?

D. HELENA — Só uma coisa lhe acho inaceitável.

BARÃO — Que é?

D. HELENA — A teoria de que o amor e a ciência são incompatíveis.

BARÃO — Oh! isso...

D. HELENA — Dá-se o espírito à ciência e o coração ao amor. São territórios diferentes, ainda que limítrofes.

BARÃO — Um acaba por anexar o outro.

D. HELENA — Não creio.

BARÃO — O casamento é uma bela coisa, mas o que faz bem a uns, pode fazer mal a outros. Sabe que Mafoma não permite o uso do vinho aos seus sectários. Que fazem os turcos? Extraem o suco de uma planta, da família das papaveráceas, bebem-no, e ficam alegres. Esse licor, se nós o bebêssemos, matar-nos-ia. O casamento, para nós, é o vinho turco.

D. HELENA (erguendo os ombros) -Comparação não é argumento. Demais, houve e há sábios casados.

BARÃO — Que seriam mais sábios se não fossem casados.

D. HELENA — Não fale assim. A esposa fortifica a alma do sábio. Deve ser um quadro delicioso para o homem que despende as suas horas na investigação da natureza, faze-lo ao lado da mulher que o ampara e anima, testemunha de seus esforços, sócia de suas alegrias, atenta, dedicada, amorosa. Será vaidade de sexo? Pode ser, mas eu creio que o melhor premio do mérito é o sorriso da mulher amada. O aplauso público é mais ruidoso, mas muito menos tocante que a aprovação doméstica.

BARÃO (depois de um instante de hesitação e luta) — Falemos da nossa lição.

D. HELENA — Amanhã, se minha tia consentir. (Levanta-se). Até amanhã, não?

BARÃO — Hoje mesmo, se o ordenar.

D. HELENA — Acredita que não perderei o tempo?

BARÃO — Estou certo que não.

D. HELENA — Serei acadêmica de Estocolmo?

BARÃO — Conto que terei essa honra.

D. HELENA (cortejando) — Até amanhã.

BARÃO (o mesmo) — Minha senhora! (D. Helena sai pelo fundo, esquerda, o Barão caminha para a direita, mas volta para buscar o livro que ficara sobre a cadeira ou sofá).





CENA X

Barão, D. Leonor

BARÃO (pensativo) — Até amanhã! Devo eu cá voltar? Talvez não devesse, mas é interesse da ciência... a minha palavra empenhada... O pior de tudo é que a discípula é graciosa e bonita. Nunca tive discípula, ignoro até que ponto é perigoso... Ignoro? Talvez não... (Põe a mão no peito). Que é isto?... (Resoluto). Não, sicambro! Não hás de adorar o que queimaste! Eia, volvamos às flores e deixemos esta casa para sempre. (Entra D. Leonor).

D. LEONOR (vendo o Barão) — Ah!

BARÃO — Voltei há dois minutos; vim buscar este livro. (Cumprimentando). Minha senhora!

D. LEONOR — Senhor Barão!

BARÃO (vai até à porta e volta) — Creio que V. Excia. não me fica querendo mal?

D. LEONOR — Certamente que não.

BARÃO (cumprimentando) — Minha senhora!

D. LEONOR (idem) — Senhor Barão!

BARÃO (vai até à porta e volta) — A senhora D. Helena não lhe falou agora?

D. LEONOR — Sobre que?

BARÃO — Sobre umas lições de botânica...

D. LEONOR — Não me falou em nada...

BARÃO (cumprimentando) — Minha senhora!

D. LEONOR (idem) — Senhor Barão! (Barão sai). Que esquisitão! Valia a pena cultivá-lo de perto.

BARÃO (reaparecendo) — Perdão...

D. LEONOR — Ah! Que manda?

BARÃO (aproxima-se) — Completo a minha pergunta. A sobrinha de V. Excia. falou-me em receber algumas lições de botânica; V.Excia. consente? (Pausa). Há de parecer-lhe esquisito este pedido, depois do que tive a honra de fazer-lhe há pouco...

D. LEONOR — Sr. Barão, no meio de tantas cópias e imitações humanas...

BARÃO — Eu acabo: sou original.

D. LEONOR — Não ouso dizê-lo.

BARÃO — Sou; noto, entretanto, que a observação de V. Excia. não responde à minha pergunta.

D. LEONOR — Bem sei; por isso mesmo é que a fiz.

BARÃO — Nesse caso...

D. LEONOR — Nesse caso, deixe-me refletir.

BARÃO — Cinco minutos?

D. LEONOR — Vinte e quatro horas.

BARÃO — Nada menos?

D. LEONOR — Nada menos.

BARÃO (cumprimentando) — Minha senhora!

D. LEONOR (idem) — Senhor Barão! (Sai o Barão).





CENA XI

D. Leonor, D. Cecília

D. LEONOR — Singular é ele, mas não menos singular é a idéia de Helena. Para que quererá ela aprender botânica?

D. CECÍLIA (entrando) — Helena! (D. Leonor volta-se). Ah! é titia.

D. LEONOR — Sou eu.

D. CECÍLIA — Onde está Helena?

D. LEONOR — Não sei, talvez lá em cima. (D. Cecília dirige-se para o fundo). Onde vais?...

D. CECÍLIA — Vou...

D. LEONOR — Acaba.

D. CECÍLIA — Vou concertar o penteado.

D. LEONOR — Vem cá; concerto eu. (D. Cecília aproxima-se de D. Leonor). Não é preciso, está excelente. Diz-me: estás muito triste?

D. CECÍLIA (muito triste) — Não, senhora; estou alegre.

D. LEONOR — Mas, Helena disse-me que tu...

D.CECÍLIA — Foi gracejo.

D. LEONOR — Não creio; tens alguma coisa que te aflige; hás de contar-me tudo.

D. CECÍLIA — Não posso.

D. LEONOR — Não tens confiança em mim?

D. CECÍLIA- Oh! toda!

D. LEONOR — Pois eu exijo... (Vendo Helena, que aparece à porta do fundo, esquerda). Ah! chegas a propósito.





CENA XII

D. Leonor, D. Cecília, D. Helena

D. HELENA — Para que?

D. LEONOR — Explica-me que historia é essa que me contou o Barão?

D. CECÍLIA (com curiosidade) — O Barão?

D. LEONOR — Parece que estás disposta a estudar botânica.

D. HELENA — Estou.

D. CECÍLIA (sorrindo) — Com o Barão?

D. HELENA — Com o Barão.

D. LEONOR — Sem o meu consentimento?

D. HELENA — Com o seu consentimento.

D. LEONOR — Mas de que te serve saber botânica?

D. HELENA — Serve para conhecer as flores dos meus bouquets, para não confundir jasmíneas com rubiáceas, nem bromélias com umbelíferas.

D. LEONOR — Com que?

D. HELENA — Umbelíferas.

D.LEONOR — Umbe...

D. HELENA — ... líferas. Umbelíferas.

D. LEONOR — Virgem santa! E que ganhas tu com esses nomes bárbaros?

D. HELENA — Muita coisa.

D. CECÍLIA (à parte) — Boa Helena! Compreendo tudo.

D. HELENA — O perianto, por exemplo; a senhora talvez ignore a questão do perianto... a questão das gramíneas...

D. LEONOR — E dou graças a Deus!

D. CECÍLIA (animada) — Oh! deve ser uma questão importantíssima!

D. LEONOR (espantada) — Também tu!

D. CECÍLIA — Só o nome! Perianto. É nome grego, titia, um delicioso nome grego. (À parte). Estou morta por saber do que se trata.

D. LEONOR — Vocês fazem-me perder o juízo! Aqui andam bruxas, de certo. Perianto de um lado, bromélias de outro; uma língua de gentios, avessa à gente cristã. Que quer dizer tudo isso?

D. CECÍLIA — Quer dizer que a ciência é uma grande coisa e que não há remédio senão adorar a botânica.

D. LEONOR — Que mais?

D. CECÍLIA — Que mais? Quer dizer que a noite de hoje há de estar deliciosa, e poderemos ir ao teatro lírico. Vamos, sim? Amanhã é o baile do conselheiro e sábado o casamento da Júlia Marcondes. Três dias de festas! Prometo divertir-me muito, muito, muito. Estou tão contente! Ria-se, titia; ria-se e dê-me um beijo!

D. LEONOR — Não dou, não, senhora. Minha opinião é contra a botânica, e isto mesmo vou escrever ao Barão.

D. HELENA — Reflita primeiro; basta amanhã!

D. LEONOR — Há de ser hoje mesmo! Esta casa está ficando muito sueca; voltemos a ser brasileiras. Vou escrever ao urso. Acompanha-me, Cecília; hás de contar-me o que lia. (Saem).





CENA XIII

D. Helena, Barão

D. HELENA — Cecília deitou tudo a perder... Não se pode fazer nada com crianças... Tanto pior para ela. (Pausa). Quem sabe se tanto melhor para mim? Pode ser. Aquele professor não é assaz velho, como convinha. Além disso, há nele um ar de diamante bruto, uma alma apenas coberta pela crosta científica, mas cheia de fogo e luz. Se eu viesse a arder ou cegar... (Levanta os ombros). Que idéia! Não passa de um urso, como titia lhe chama, um urso com patas de rosas.

BARÃO (aproximando-se) — Perdão, minha senhora. Ao atravessar a chácara ia pensando no nosso acordo, e, sinto dizê-lo, mudei de resolução.

D. HELENA — Mudou

BARÃO (aproximando-se) — Mudei.

D. HELENA — Pode saber-se o motivo?

BARÃO — São três. O primeiro é o meu pouco saber... Ri-se?

D. HELENA — De incredulidade. O segundo motivo...

BARÃO — O segundo motivo é o meu gênio áspero e despótico.

D. HELENA — Vejamos o terceiro.

BARÃO — O terceiro é a sua idade. Vinte e um anos, não?

D. HELENA — Vinte e dois.

BARÃO — Solteira?

D. HELENA — Viúva.

BARÃO — Perpetuamente viúva?

D. HELENA — Talvez.

BARÃO — Nesse caso, quarto motivo: sua viuvez perpétua.

D. HELENA — Conclusão: todo o nosso acordo está desfeito.

BARÃO — Não digo que esteja; só por mim não o posso romper. V. Excia., porém, avaliará as razões que lhe dou, e decidirá se ele deve ser mantido.

D. HELENA — Suponha que respondo afirmativamente.

BARÃO — Paciência! obedecerei.

D. HELENA — De má vontade?

BARÃO — Não; mas com grande desconsolação.

D. HELENA — Pois, Sr. Barão, não desejo violentá-lo; está livre.

BARÃO — Livre, e não menos desconsolado.

D. HELENA — Tanto melhor!

BARÃO — Como assim?

D. HELENA — Nada mais simples: vejo que é caprichoso e incoerente.

BARÃO — Incoerente, é verdade.

D. HELENA — Irei procurar outro mestre.

BARÃO — Outro mestre! Não faça isso.

D. HELENA — Por que?

BARÃO — Porque... (Pausa). Vossa Excia. é inteligente bastante para dispensar mestres.

D. HELENA — Quem lho disse?

BARÃO — Adivinha-se.

D. HELENA — Bem; irei queimar os olhos nos livros.

BARÃO — Oh! seria estragar as mais belas flores do mundo!

D. HELENA (sorrindo) — Mas então nem mestres nem livros?

BARÃO — Livros, mas aplicação moderada. A ciência não se colhe de afogadilho; é preciso penetra-la com segurança e cautela.

D. HELENA — Obrigada. (Estendendo-lhe a mão). E visto que me recusa as suas lições, adeus.

BARÃO — Já!

D. HELENA — Pensei que queria retirar-se.

BARÃO — Queria e custa-me. Em todo caso, não desejava sair sem que V. Excia. me dissesse francamente o que pensa de mim. Bem ou mal?

D. HELENA — Bem e mal.

BARÃO — Pensa então...

D. HELENA — Penso que é inteligente e bom, mas caprichoso e egoísta.

BARÃO — Egoísta!

D. HELENA — Em toda a força da expressão. (Senta-se). Por egoísmo — científico, é verdade, — opõe-se às afeições de seu sobrinho; por egoísmo, recusa-me as suas lições. Creio que o Sr. Barão nasceu para mirar-se no vasto espelho da natureza, a sós consigo, longe do mundo, e seus enfados. Aposto que — desculpe a indiscrição da pergunta — aposto que nunca amou?

BARÃO — Nunca.

D. HELENA — De maneira que nunca uma flor teve a seus olhos outra aplicação, além do estudo?

BARÃO — Engana-se.

D HELENA — Sim?

BARÃO — Depositei algumas coroas de goivos no túmulo de minha mãe.

D. HELENA — Ah!

BARÃO — Há em mim alguma coisa mais do que eu mesmo. Há a poesia das afeições por baixo da prova científica. Não a ostento, é verdade; mas sabe V. Excia. o que tem sido a minha vida? Um claustro. Cedo perdi o que havia mais caro: a família. Desposei a ciência, que me tem servido de alegrias, consolações e esperanças. Deixemos, porém, tão tristes memórias.

D. HELENA — Memórias de homem; até aqui eu só via o sábio.

BARÃO — Mas o sábio reaparece e enterra o homem. Volto à vida vegetativa... se me é lícito arriscar um trocadilho em português, que eu não sei bem se o é. Pode ser que não passe de aparência. Todo eu sou aparências, minha senhora, aparências de homem, de linguagem e até de ciência...

D. HELENA — Quer que o elogie?

BARÃO — Não; desejo que me perdoe.

D. HELENA — Perdoar-lhe o que?

BARÃO — A incoerência de que me acusava há pouco.

D. HELENA — Tanto perdôo que o imito. Mudo igualmente de resolução, e dou de mão ao estudo.

BARÃO — Não faça isso!

D HELENA — Não lerei uma só linha de botânica, que é a mais aborrecível ciência do mundo.

BARÃO — Mas o seu talento...

D. HELENA — Não tenho talento; tinha curiosidade.

BARÃO — É a chave do saber.

D. HELENA — Que monta isso? A porta fica tão longe!

BARÃO — É certo, mas o caminho é de flores.

D. HELENA — Com espinhos.

BARÃO — Eu lhe quebrarei os espinhos.

D. HELENA — De que modo?

BARÃO — Serei seu mestre.

D. HELENA (levanta-se) — Não! Respeito os seus escrúpulos. Subsistem, penso eu, os motivos que alegou. Deixe-me ficar na minha ignorância.

BARÃO — É a última palavra de Vossa Excia.?

D. HELENA — Última.

BARÃO (com ar de despedida) — Nesse caso... aguardo as suas ordens.

D. HELENA — Que se não esqueça de nós.

BARÃO — Crê possível que me esquecesse?

D. HELENA — Naturalmente: um conhecimento de vinte minutos...

BARÃO — O tempo importa pouco ao caso. Não me esquecerei nunca mais destes vinte minutos, os melhores da minha vida, os primeiros que hei realmente vivido. A ciência não é tudo, minha senhora. Há alguma coisa mais, além do espírito, alguma coisa essencial ao homem, e...

D. HELENA — Repare, Sr. Barão, que está falando à sua ex-discípula.

BARÃO — A minha ex-discípula tem coração, e sabe que o mundo intelectual é estreito para conter o homem todo; sabe que a vida moral é uma necessidade do ser pensante.

D. HELENA — Não passemos da botânica à filosofia, nem tanto à terra, nem tanto ao céu. O que o Sr. Barão quer dizer, em boa e mediana prosa, é que estes vinte minutos de palestra não o enfadaram de todo. Eu digo a mesma coisa. Pena é que fossem só vinte minutos, e que o Sr. Barão volte às suas amadas plantas; mas é força ir ter com elas, não quero tolher-lhe os passos. Adeus! (Inclinando-se como a despedir-se).

BARÃO (cumprimentando) — Minha senhora! (Caminha até à porta e pára). Não transporei mais esta porta?

D. HELENA — Já a fechou por suas próprias mãos.

BARÃO — A chave está nas suas.

D. HELENA (olhando para as mãos) — Nas minhas?

BARÃO (aproximando-se) — Decerto.

D. HELENA — Não a vejo.

BARÃO — É a esperança. Dê-me a esperança de que...

D. HELENA (depois de uma pausa) — A esperança de que...

BARÃO — A esperança de que... a esperança de...

D. HELENA (que tem tirado uma flor de um vaso) — Creio que lhe será mais fácil definir esta flor.

BARÃO — Talvez.

D. HELENA — Mas não é preciso dizer mais: adivinhei-o.

BARÃO (alvoroçado) — Adivinhou?

D. HELENA — Adivinhei que quer a todo o transe ser meu mestre.

BARÃO (friamente) — É isso.

D. HELENA — Aceito.

BARÃO — Obrigado.

D. HELENA — Parece-me que ficou triste?...

BARÃO — Fiquei, pois que só adivinhou metade do meu pensamento. Não adivinhou que eu... por que o não direi? di-lo-ei francamente... Não adivinhou que...

D. HELENA — Que...

BARÃO (depois de alguns esforços para falar) — Nada... nada...

D. LEONOR (dentro) — Não admito!





CENA XIV

D. Helena, Barão, D. Leonor, D. Cecília

D. CECÍLIA (entrando pelo fundo com D. Leonor) — Mas titia...

D. LEONOR — Não admito, já disse! Não te faltam casamentos. (Vendo o Barão). Ainda aqui!

BARÃO — Ainda e sempre, minha senhora.

D. LEONOR — Nova originalidade.

BARÃO — Oh! não! A coisa mais vulgar do mundo. Refleti, minha senhora, e venho pedir para meu sobrinho a mão de sua encantadora sobrinha. (Gesto de Cecília).

D. LEONOR — A mão de Cecília!

D. CECÍLIA — Que ouço!

BARÃO — O que eu lhe pedia há pouco era uma extravagância, um ato de egoísmo e violência, além de descortesia que era, e que V.Excia. me perdoou, atendendo à singularidade das minhas maneiras. Vejo tudo isso agora...

D. LEONOR — Não me oponho ao casamento, se for do agrado de Cecília.

D. CECÍLIA (baixo, a D. Helena) Obrigada! Foste tu...

D. LEONOR — Vejo que o Sr. Barão refletiu.

BARÃO — Não foi só reflexão, foi também resolução.

D. LEONOR — Resolução?

BARÃO (gravemente) — Minha senhora, atrevo-me a fazer outro pedido.

D. LEONOR — Ensinar botânica à Helena? Já me deu vinte e quatro horas para responder.

BARÃO — Peço-lhe mais do que isso; V. Excia. que é, por assim dizer, irmã mais velha de sua sobrinha, pode intervir junto dela para... (Pausa).

D. LEONOR — Para...

D. HELENA — Acabo eu. O que o Sr. Barão deseja é a minha mão.

BARÃO — Justamente!

D. LEONOR (espantada) — Mas... Não compreendo nada.

BARÃO — Não é preciso compreender; basta pedir.

D. HELENA — Não basta pedir; é preciso alcançar.

BARÃO — Não alcançarei?

D. HELENA — Dê-me três meses de reflexão.

BARÃO — Três meses é a eternidade

D. HELENA — Uma eternidade de noventa dias.

BARÃO — Depois dela, a felicidade ou o desespero?

D. HELENA (estendendo-lhe a mão) — Está nas suas mãos a escolha. (A D. Leonor). Não se admire tanto, titia; tudo isto é botânica aplicada.




FIM


Quase ministro

________________________________________

Texto-fonte:
Teatro de Machado de Assis, org. de João Roberto Faria,
São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Publicada originalmente na Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, 1864.










NOTA PRELIMINAR

Esta comédia foi expressamente escrita para ser representada em um sarau literário e artístico, dado a 22 de novembro do ano passado (1862), em casa de alguns amigos na rua da Quitanda.

Os cavalheiros que se encarregaram dos diversos papéis foram Os Senhores Morais Tavares, Manuel de Melo, Ernesto Cibrão, Bento Marques, Insley Pacheco, Artur Napoleão, Muniz Barreto e Carlos Schramm. O desempenho, como podem atestar os que lá estiveram, foi muito acima do que se podia esperar de amadores.

Pela representação da comédia se abriu o sarau, continuando com a leitura de escritos poéticos e a execução de composições musicais.

Leram composições poéticas os Senhores: conselheiro José Feliciano de Castilho, fragmentos de uma excelente tradução do Fausto;Bruno Seabra, fragmentos do seu poema Dom Fuas, do gênero humorístico, em que a sua musa se distingue sempre; Ernesto Cibrão, uma graciosa e delicada poesia — O Campo Santo; Doutor Pedro Luís — Os voluntários da morte, ode eloqüente sobre a Polônia; Faustino de Novais, uns sentidos versos de despedida a Artur Napoleão; finalmente, o próprio autor da comédia.

Executaram excelentes pedaços de música os Senhores: Artur Napoleão, A. Arnaud, Schramm e Wagner, pianistas; Muniz Barreto e Bernardelli, violinistas; Tronconi, harpista; Reichert, flautista; Bolgiani, Tootal, Wilmoth, Orlandini e Fernand, cantores.

A este grupo de artistas, é de rigor acrescentar o nome do Senhor Leopoldo Heck, cujos trabalhos de pintura são bem conhecidos, e que se encarregou de ilustrar o programa do sarau afixado na sala.

O sarau era o sexto ou sétimo dado pelos mesmos amigos, reinando neste, como em todos, a franca alegria e convivência cordial a que davam lugar o bom gosto da direção e a urbanidade dos diretores.




PERSONAGENS

LUCIANO MARTINS, deputado
DOUTOR SILVEIRA
JOSÉ PACHECO
CARLOS BASTOS
MATEUS
LUÍS PEREIRA
MÜLLER
AGAPITO



Ação — Rio de Janeiro.
(Sala em casa de Martins.)



Cena I

MARTINS, SILVEIRA

SILVEIRA
(entrando)

Primo Martins, abraça este ressuscitado!

MARTINS

Como assim?

SILVEIRA

Não imaginas. Senta-te, senta-te. Como vai a prima?

MARTINS

Está boa. Mas que foi?

SILVEIRA

Foi um milagre. Conheces aquele meu alazão?

MARTINS

Ah! basta; história de cavalos... que mania!

SILVEIRA

É um vício, confesso. Para mim não há outros: nem fumo, nem mulheres, nem jogo, nem vinho; tudo isso que muitas vezes se encontra em um só homem, reuni-o eu na paixão dos cavalos; mas que não há nada acima de um cavalo soberbo, elegante, fogoso. Olha, eu compreendo Calígula.

MARTINS

Mas, enfim...

SILVEIRA

A história? É simples. Conheces o meu Intrépido? E um lindo alazão! Pois ia eu há pouco, comodamente montado, costeando a praia de Botafogo; ia distraído, não sei em que pensava. De repente, um tílburi que vinha em frente esbarra e tomba. O Intrépido espanta-se; ergue as patas dianteiras, diante da massa que ficara defronte, donde saíam gritos e lamentos. Procurei contê-lo, mas qual! Quando dei por mim rolava muito prosaicamente na poeira. Levantei-me a custo; todo o corpo me doía; mas enfim pude tomar um carro e ir mudar de roupa. Quanto ao alazão, ninguém deu por ele; deitou a correr até agora.

MARTINS

Que maluco!

SILVEIRA

Ah! mas as comoções... E as folhas amanhã contando o fato: "DESASTRE. — Ontem, o jovem e estimado Dr. Silveira Borges, primo do talentoso deputado Luciano Alberto Martins, escapou de morrer... etc.”. Só isto!

MARTINS

Acabaste a história do teu desastre?

SILVEIRA

Acabei.

MARTINS

Ouve agora o meu.

SILVEIRA

Estás ministro, aposto!

MARTINS

Quase.

SILVEIRA

Conta-me isto. Eu já tinha ouvido filar na queda do ministério.

MARTINS

Faleceu hoje de manhã.

SILVEIRA

Deus lhe fale n'alma!

MARTINS

Pois creio que vou ser convidado para uma das pastas.

SILVEIRA

Ainda não foste?

MARTINS

Ainda não; mas a coisa já é tão sabida na cidade, ouvi isto em tantas partes, que julguei dever voltar para casa à espera do que vier.

SILVEIRA

Muito bem! Dá cá um abraço! Não é um favor que te fazem; mereces, mereces... Ó primo, eu também posso servir em alguma pasta?

MARTINS

Quando houver uma pasta dos alazões... (batem palmas) Quem será?

SILVEIRA

Será a pasta?

MARTINS

Vê quem é. (Silveira vai à porta. Entra Pacheco)



Cena II

OS MESMOS E JOSÉ PACHECO

PACHECO

V. Exa. dá-me licença?

MARTINS

Pode entrar.

PACHECO

Não me conhece?

MARTINS

Não tenho a honra...

PACHECO

José Pacheco.

MARTINS

José...

PACHECO

Estivemos há dois dias juntos em casa do Bernardo. Fui-lhe apresentado por um colega da câmara.

MARTINS

Ah! (a Silveira, baixo) Que me quererá?

SILVEIRA
(baixo)

Já cheiras a ministro.

PACHECO
(sentando-se)

Dá licença?

MARTINS

Pois não! (senta-se)

PACHECO

Então que me diz à situação? Que me diz à situação? Eu já previa isto. Não sei se teve a bondade de ler uns artigos meus assinados — Armand Carrel. Tudo o que acontece hoje está lá anunciado. Leia-os, e verá. Não sei se os leu?

MARTINS

Tenho uma idéia vaga.

PACHECO

Ah! pois então há de lembrar-se de um deles, creio que é o IV, não, é o V. Pois nesse artigo está previsto o que aconteceu hoje, timtim por tim tim.

SILVEIRA

Então V.S. é profeta?

PACHECO

Em política ser lógico é ser profeta. Apliquem-se certos princípios a certos fatos, a conseqüência é sempre a mesma. Mas é mister que haja os fatos e os princípios...

SILVEIRA

V.S. aplicou-os?...

PACHECO

Apliquei, sim, senhor, e adivinhei. Leia o meu V artigo, e verá com que certeza matemática pintei a situação atual. Ah! ia-me esquecendo (a Martins), receba V. Exa. os meus sinceros parabéns.

MARTINS

Por quê?

PACHECO

Não foi chamado para o ministério?

MARTINS

Não estou decidido.

PACHECO

Na cidade não se fala em outra coisa. É uma alegria geral. Mas, por que não está decidido? Não quer aceitar?

MARTINS

Não sei ainda.

PACHECO

Aceite, aceite! É digno; e digo mais, na atual situação, o seu concurso pode servir de muito.

MARTINS

Obrigado.

PACHECO

É o que lhe digo. Depois dos meus artigos, principalmente o V, não é lícito a ninguém recusar uma pasta, só se absolutamente não quiser servir o país. Mas nos meus artigos está tudo, é uma espécie de compêndio. Demais, a situação é nossa; nossa, repito, porque eu sou do partido de V. Exa.

MARTINS

É muita honra.

PACHECO

Uma vez que se compenetre da situação, está tudo feito. Ora diga-me, que política pretende seguir?

MARTINS

A do nosso partido.

PACHECO

É muito vago isso. O que eu pergunto é se pretende governar com energia ou com moderação. Tudo depende do modo. A situação exige um, mas o outro também pode servir...

MARTINS

Ah!

SILVEIRA
(à parte)

Que maçante!

PACHECO

Sim, a energia é... é isso, a moderação, entretanto... (mudando o tom) Ora, sinto deveras que não tivesse lido os meus artigos, lá vem tudo isso.

MARTINS

Vou lê-los... Creio que já os li, mas lerei segunda vez. Estas coisas devem ser lidas muitas vezes.

PACHECO

Não tem dúvida, como os catecismos. Tenho escrito outros muitos; há doze anos que não faço outra coisa; presto religiosa atenção aos negócios do estado, e emprego-me em prever as situações. O que nunca me aconteceu foi atacar ninguém; não vejo as pessoas, vejo sempre as idéias. Sou capaz de impugnar hoje os atos de um ministro e ir amanhã almoçar com ele.

SILVEIRA

Vê-se logo.

PACHECO

Está claro!

MARTINS
(baixo a Silveira)

Será tolo ou velhaco?

SILVEIRA

Uma e outra coisa. (alto) Ora, não me dirá, com tais disposições, por que não segue a carreira política? Por que não se propõe a uma cadeira no parlamento?

PACHECO

Tenho meu amor próprio, espero que ma ofereçam.

SILVEIRA

Talvez receiem ofendê-lo.

PACHECO

Ofender-me?

SILVEIRA

Sim, a sua modéstia...

PACHECO

Ah! modesto sou; mas não ficarei zangado.

SILVEIRA

Se lhe oferecerem uma cadeira... está bom. Eu também não; nem ninguém. Mas eu acho que se devia propor; fazer um manifesto, juntar os seus artigos, sem faltar o V...

PACHECO

Esse principalmente. Cito aí boa soma de autores. Eu, de ordinário, cito muitos autores.

SILVEIRA

Pois é isso, escreva o manifesto e apresente-se.

PACHECO

Tenho medo da derrota.

SILVEIRA

Ora, com as suas habilitações...

PACHECO

É verdade, mas o mérito é quase sempre desconhecido, e enquanto eu vegeto nos — a pedidos dos jornais, vejo muita gente chegar acumieira da fama. (a Martins) Ora diga-me, o que pensará V. Exa. quando eu lhe disser que redigi um folheto e que vou imprimi-lo?

MARTINS

Pensarei que...

PACHECO
(metendo a mão no bolso)

Aqui lho trago. (tira um rolo de papel) Tem muito que fazer?

MARTINS

Alguma coisa.

SILVEIRA

Muito, muito.

PACHECO

Então não pode ouvir o meu folheto?

MARTINS

Se me dispensasse agora...

PACHECO

Pois sim, em outra ocasião. Mas em resumo é isso; trato dos meios de obter uma renda três vezes maior do que a que temos sem lançar mão de empréstimos, e mais ainda, diminuindo os impostos.

SILVEIRA

Oh!

PACHECO
(guardando o rolo)

Custou-me muitos dias de trabalho, mas espero fazer barulho.

SILVEIRA
(à parte)

Ora espera... (alto) Mas então, primo...

PACHECO

Ah! é primo de V. Exa.?

SILVEIRA

Sim, senhor.

PACHECO

Logo vi, há traços de família; vê-se que é um moço inteligente. A inteligência é o principal traço da família de V. Exas. Mas dizia...

SILVEIRA

Dizia ao primo que vou decididamente comprar uns cavalos do Cabo magníficos. Não sei se os viu já. Estão na cocheira do major...

PACHECO

Não vi, não senhor.

SILVEIRA

Pois, senhor, são magníficos! É a melhor estampa que tenho visto, todos do mais puro castanho, elegantes, delgados, vivos. O major encomendou trinta; chegaram seis; fico com todos. Vamos nós vê-los?

PACHECO
(aborrecido)

Eu não entendo de cavalos. (levanta-se) Hão de dar-me licença. (a Martins) V. Exa. janta às cinco?

MARTINS

Sim, senhor, quando quiser...

PACHECO

Ah! hoje mesmo, hoje mesmo. Quero saber se aceitará ou não. Mas se quer um conselho de amigo, aceite, aceite. A situação esta talhada para um homem como V. Exa. Não a deixe passar. Recomendações a toda a sua família. Meus senhores. (da porta) Se quer, trago-lhe uma coleção dos meus artigos?

MARTINS

Obrigado, cá os tenho.

PACHECO

Bem, sem mais cerimônia.



Cena III

MARTINS, SILVEIRA

MARTINS

Que me dizes a isto?

SILVEIRA

É um parasita, está claro.

MARTINS

E virá jantar?

SILVEIRA

Com toda a certeza.

MARTINS

Ora esta!

SILVEIRA

É apenas o começo; não passas ainda de um quase-ministro. Que acontecerá quando o fores de todo?

MARTINS

Tal preço não vale o trono.

SILVEIRA

Ora, aprecia lá a minha filosofia. Só me ocupo dos meus alazões, mas quem se lembra de me vir oferecer artigos para ler e estômagos para alimentar? Ninguém. Feliz obscuridade!

MARTINS

Mas a sem-cerimônia...

SILVEIRA

Ah! querias que fossem acanhados? São lestos, desembaraçados, como em suas próprias casas. Sabem tocar a corda.

MARTINS

Mas enfim, não há muitos como este. Deus nos livre! Seria uma praga! Que maçante! Se não lhe falas em cavalos, ainda aqui estava! (batem palmas) Será outro?

SILVEIRA

Será o mesmo?



Cena IV

OS MESMOS, CARLOS BASTOS

BASTOS

Meus senhores...

MARTINS

Queira sentar-se. (sentam-se) Que deseja?

BASTOS

Sou filho das musas.

SILVEIRA

Bem, com licença.

MARTINS

Onde vais?

SILVEIRA

Vou lá dentro falar à prima.

MARTINS
(baixo)

Presta-me o auxílio dos teus cavalos.

SILVEIRA
(baixo)

Não é possível, este conhece o Pégaso. Com licença.



Cena V

MARTINS, BASTOS

BASTOS

Dizia eu que sou filho das musas... Com efeito, desde que me conheci, achei-me logo entre elas. Elas me influíram a inspiração e o gosto da poesia, de modo que, desde os mais tenros anos, fui poeta.

MARTINS

Sim, senhor, mas...

BASTOS

Mal comecei a ter entendimento, achei-me logo entre a poesia e a prosa, como Cristo entre o bom e o mau ladrão. Ou devia ser poeta, conforme me podia o gênio, ou lavrador, conforme meu pai queria. Segui os impulsos do gênio; aumentei a lista dos poetas e diminuí a dos lavradores.

MARTINS

Porém...

BASTOS

E podia ser o contrário? Há alguém que fuja a sua sina? V. Exa. não é um exemplo? Não se acaba de dar às suas brilhantes qualidades políticas a mais honrosa sanção? Corre ao menos por toda a cidade.

MARTINS

Ainda não é completamente exato.

BASTOS

Mas há de ser, deve ser. (depois de uma pausa) A poesia e a política acham-se ligadas por um laço estreitíssimo. O que é a política? Eu a comparo a Minerva. Ora, Minerva é filha de Júpiter, como Apolo. Ficam sendo, portanto, irmãs. Deste estreito parentesco nasce que a minha musa, apenas soube do triunfo político de V. Exa., não pôde deixar de dar alguma cópia de si. Introduziu-me na cabeça a faísca divina, emprestou-me as suas asas, e arrojou-me até onde se arrojava Píndaro. Há de me desculpar, mas agora mesmo parece-me que ainda por lá ando.

MARTINS
(à parte)

Ora dá-se.

BASTOS

Longo tempo vacilei; não sabia se devia fazer uma ode ou um poema. Era melhor o poema, por oferecer um quadro mais largo, e poder assim conter mais comodamente todas as ações grandes da vida de V. Exa.; mas um poema só deve pegar do herói quando ele morre; e V. Exa., por fortuna nossa, ainda se acha entre os vivos. A ode prestava-se mais, era mais curta e mais própria. Desta opinião foi amusa que me inspirou a melhor composição que até hoje tenho feito. V. Exa. vai ouvi-la. (mete a mão no bolso)

MARTINS

Perdão, mas agora não me é possível.

BASTOS

Mas...

MARTINS

Dê cá; lerei mais tarde. Entretanto, cumpre-me dizer que ainda não é cabida, porque ainda não sou ministro.

BASTOS

Mas há de ser, deve ser. Olhe, ocorre-me uma coisa. Naturalmente hoje à tarde já isso está decidido. Seus amigos e parentes virão provavelmente jantar com V. Exa.; então no melhor da festa, entre a pêra e o queijo, levanto-me eu, como Horácio a mesa de Augusto, e desfio a minha ode! Que acha? é muito melhor, é muito melhor.

MARTINS

Será melhor não a ler; pareceria encomenda.

BASTOS

Oh! Modéstia! Como assenta bem em um ministro!

MARTINS

Não é modéstia.

BASTOS

Mas quem poderá supor que seja encomenda? O seu caráter de homem público repele isso, tanto quanto repele o meu caráter de poeta. Há de se pensar o que realmente é: homenagem de um filho das musas a um aluno de Minerva. Descanse, conte com a sobremesa poética.

MARTINS

Enfim...

BASTOS

Agora, diga-me, quais são as dúvidas para aceitar esse cargo?

MARTINS

São secretas.

BASTOS

Deixe-se disso; aceite, que é o verdadeiro. V. Exa. deve servir o país. É o que eu sempre digo a todos... Ah! não sei se sabe: de há cinco anos a esta parte tenho sido cantor de todos os ministérios. É que, na verdade, quando um ministério sobe ao poder, há razões para acreditar que fará a felicidade da nação. Mas nenhum a fez; este há de ser exceção: V. Exa. está nele e há de obrar de modo que mereça as bênçãos do futuro. Ah! os poetas são um tanto profetas.

MARTINS
(levantando-se)

Muito obrigado. Mas há de me desculpar. (vê o relógio) Devo sair.

BASTOS

Eu também saio e terei muita honra de ir à ilharga de V. Exa.

MARTINS

Sim... mas, devo sair daqui a pouco.

BASTOS
(sentando-se)

Bem, eu espero.

MARTINS

Mas é que eu tenho de ir para o interior de minha casa; escrever umas cartas.

BASTOS

Sem cerimônia. Sairemos depois e voltaremos... V. Exa. janta às cinco?

MARTINS

Ah! quer esperar?

BASTOS

Quero ser dos primeiros que o abracem, quando vier a confirmação da notícia; quero antes de todos estreitar nos braços o ministro que vai salvar a nação.

MARTINS
(meio zangado)

Pois fique, fique.



Cena VI

OS MESMOS, MATEUS

MATEUS

É um criado de V. Exa.

MARTINS

Pode entrar.

BASTOS
(à parte)

Será algum colega? Chega tarde!

MATEUS

Não tenho a honra de ser conhecido por V. Exa., mas, em poucas palavras, direi quem sou...

MARTINS

Tenha a bondade de sentar-se.

MATEUS
(vendo Bastos)

Perdão; está com gente; voltarei em outra ocasião.

MARTINS

Não, diga o que quer, este senhor vai já.

BASTOS

Pois não! (à parte) Que remédio! (alto) Às ordens de V. Exa.; até logo... não me demoro muito.



Cena VII

MARTINS, MATEUS

MARTINS

Estou às suas ordens.

MATEUS

Primeiramente deixe-me dar-lhe os parabéns; sei que vai ter a honra de sentar-se nas poltronas do Executivo, e eu acho que é do meu dever congratular-me com a nação.

MARTINS

Muito obrigado. (à parte) É sempre a mesma cantilena.

MATEUS

O país tem acompanhado os passos brilhantes da carreira política de V. Exa. Todos contam que, subindo ao ministério, V. Exa. vai dar à sociedade um novo tom. Eu penso do mesmo modo. Nenhum dos gabinetes anteriores compreendeu as verdadeiras necessidades da pátria. Uma delas é a idéia que eu tive a honra de apresentar há cinco anos, e para cuja realização ando pedindo um privilégio. Se V. Exa. não tem agora muito que fazer, vou explicar-lhe a minha idéia.

MARTINS

Perdão; mas como eu posso não ser ministro, desejava não entrar por ora no conhecimento de uma coisa que só ao ministro deve ser comunicada.

MATEUS

Não ser ministro! V. Exa. não sabe o que está dizendo... Não ser ministro é, por outros termos, deixar o país à beira do abismo com as molas do maquinismo social emperradas... Não ser ministro! Pois é possível que um homem, com os talentos e os instintos de V. Exa. diga semelhante barbaridade? É uma barbaridade. Eu já não estou em mim... Não ser ministro!

MARTINS

Basta, não se aflija desse modo.

MATEUS

Pois não me hei de afligir?

MARTINS

Mas então a sua idéia?

MATEUS
(depois de limpar a testa com o lenço)

A minha idéia é simples como água. Inventei uma peca de artilharia; coisa inteiramente nova; deixa atrás de si tudo o que ate hoje tem sido descoberto. É um invento que põe na mão do país, que o possuir, a soberania do mundo.

MARTINS

Ah! Vejamos.

MATEUS

Não posso explicar o meu segredo, porque seria perdê-lo. Não é que eu duvide da discrição de V. Exa.; longe de mim semelhante idéia; mas é que V. Exa. sabe que estas coisas têm mais virtude quando são inteiramente secretas.

MARTINS

É justo; mas diga-me lá, quais são as propriedades da sua peça?

MATEUS

São espantosas. Primeiramente, eu pretendo denominá-la: o raio de Júpiter, para honrar com um nome majestoso a majestade do meu invento. A peça é montada sobre uma carreta, a que chamarei locomotiva, porque não é outra coisa. Quanto ao modo de operar é aí que está o segredo. A peça tem sempre um depósito de pólvora e bala para carregar, e vapor para mover a máquina. Coloca-se no meio do campo e deixa-se... Não lhe bulam. Em começando o fogo, entra a peça a mover-se em todos os sentidos, descarregando bala sobre bala, aproximando-se ou recuando, Segundo a necessidade. Basta uma para destroçar um exército; calcule o que não será umas doze, como esta. É ou não a soberania do mundo?

MARTINS

Realmente, é espantoso. São peças com juízo.

MATEUS

Exatamente.

MARTINS

Deseja então um privilégio?

MATEUS

Por ora... É natural que a posteridade me faça alguma coisa... Mas tudo isso pertence ao futuro.

MARTINS

Merece, merece.

MATEUS

Contento-me com o privilégio... Devo acrescentar que alguns ingleses, alemães e americanos, que, não sei como, souberam deste invento, já me propuseram, ou a venda dele, ou uma carta de naturalização nos respectivos países; mas eu amo a minha pátria e os meus ministros.

MARTINS

Faz bem.

MATEUS

Está V. Exa. informado das virtudes da minha peça. Naturalmente daqui a pouco é ministro. Posso contar com a sua proteção?

MARTINS

Pode; mas eu não respondo pelos colegas.

MATEUS

Queira V. Exa., e os colegas cederão. Quando um homem tem as qualidades e a inteligência superior de V. Exa., não consulta, domina. Olhe, eu fico descansado a este respeito.



Cena VIII

OS MESMOS, SILVEIRA

MARTINS

Fizeste bem em vir. Fica um momento conversando com este senhor. É um inventor e pede um privilégio. Eu vou sair; vou saber novidades. (à parte) Com efeito, a coisa tarda. (alto) Até logo. Aqui estarei sempre às suas ordens. Adeus, Silveira.

BASTOS
(baixo a Martins)

Então, deixas-me só?

MARTINS
(baixo)

Agüenta-te. (alto) Até sempre!

MATEUS

Às ordens de V. Exa.



Cena IX

MATEUS, SILVEIRA

MATEUS

Eu também me vou embora. É parente do nosso ministro?

SILVEIRA

Sou primo.

MATEUS

Ah!

SILVEIRA

Então V. S. inventou alguma coisa? Não foi a pólvora?

MATEUS

Não foi, mas cheira a isso... Inventei uma peça.

SILVEIRA

Ah!

MATEUS

Um verdadeiro milagre... Mas não é o primeiro; tenho inventado outras coisas. Houve um tempo em que me zanguei; ninguém fazia caso de mim; recolhi-me ao silêncio, disposto a não inventar mais nada. Finalmente, a vocação sempre vence; comecei de novo a inventar, mas nada fiz ainda que chegasse à minha peça. Hei de dar nome ao século XIX.



Cena X

OS MESMOS, LUÍS PEREIRA

PEREIRA

S. Exa. está em casa?

SILVEIRA

Não, senhor. Que desejava?

PEREIRA

Vinha dar-lhe os parabéns.

SILVEIRA

Pode sentar-se.

PEREIRA

Saiu?

SILVEIRA

Há pouco.

PEREIRA

Mas volta?

SILVEIRA

Há de voltar.

PEREIRA

Vinha dar-lhe os parabéns... e convidá-lo.

SILVEIRA

Para quê, se não é curiosidade?

PEREIRA

Para um jantar.

SILVEIRA

Ah! (à parte) Está feito. Este oferece jantares.

PEREIRA

Está já encomendado. Lá se encontrarão várias notabilidades do país. Quero fazer ao digno ministro, sob cujo teto tenho a honra de falar neste momento, aquelas honras que o talento e a virtude merecem.

SILVEIRA

Agradeço em nome dele esta prova...

PEREIRA

V.S. pode até fazer parte da nossa festa.

SILVEIRA

É muito honra.

PEREIRA

É meu costume, quando sobe um ministério, escolher o ministro mais simpático, e oferecer-lhe um jantar. E há uma coisa singular: conto os meus filhos por ministérios. Casei-me em 50; daí para cá, tantos ministérios, tantos filhos. Ora, acontece que de cada pequeno meu é padrinho um ministro, e fico eu assim espiritualmente aparentado com todos os gabinetes. No ministério que caiu, tinha eu dois compadres. Graças a Deus, posso fazê-lo sem diminuir as minhas rendas.

SILVEIRA
(à parte)

O que lhe come o jantar é quem batiza o filho.

PEREIRA

Mas o nosso ministro, demorar-se-á muito?

SILVEIRA

Não sei... ficou de voltar.

MATEUS

Eu peco licença para me retirar. (à parte, a Silveira) Não posso ouvir isto.

SILVEIRA

Já se vai?

MATEUS

Tenho voltas que dar; mas logo cá estou. Não lhe ofereço para jantar, porque vejo que S. Exa. janta fora.

PEREIRA

Perdão, se me quer dar a honra.

MATEUS

Honra... sou eu que a recebo... aceito, aceito com muito gosto.

PEREIRA

É no Hotel Inglês, ás cinco horas.



Cena XI

OS MESMOS, AGAPITO, MÜLLER

SILVEIRA

Oh! entra, Agapito!

AGAPITO

Como estás?

SILVEIRA

Trazes parabéns?

AGAPITO

E pedidos.

SILVEIRA

O que é?

AGAPITO

Apresento-lhe o Sr. Müller, cidadão hanoveriano.

SILVEIRA
(a Müller)

Queira sentar-se.

AGAPITO

O Sr. Müller chegou há quatro meses da Europa e deseja contratar o teatro lírico.

SILVEIRA

Ah!

MÜLLER

Tenho debalde perseguido os ministros, nenhum me tem atendido. Entretanto, o que eu proponho é um verdadeiro negócio da China.

AGAPITO
(a Müller)

Olhe que não é ao ministro que está falando, é ao primo dele.

MÜLLER

Não faz mal. Veja se não é negócio da China. Proponho fazer cantar os melhores artistas da época. Os senhores vão ouvir coisas nunca ouvidas. Verão o que é um teatro lírico.

SILVEIRA

Bem, não duvido.

AGAPITO

Somente, o Sr. Müller pede uma subvenção.

SILVEIRA

É justo. Quanto?

MÜLLER

Vinte e cinco contos por mês.

MATEUS

Não é má; e os talentos do país? Os que tiverem à custa do seu trabalho produzido inventos altamente maravilhosos? O que tiver posto na mão da pátria a soberania do mundo?

AGAPITO

Ora, senhor! A soberania do mundo é a música que vence a ferocidade. Não sabe a história de Orfeu?

MÜLLER

Muito bem!

SILVEIRA

Eu acho a subvenção muito avultada.

MÜLLER

E se eu lhe provar que não é?

SILVEIRA

É possível, em relação ao esplendor dos espetáculos; mas nas circunstâncias do país...

AGAPITO

Não há circunstâncias que procedam contra a música... Deve ser aceita a proposta do Sr. Müller.

MÜLLER

Sem dúvida.

AGAPITO

Eu acho que sim. Há uma porção de razões para demonstrar a necessidade de um teatro lírico. Se o país é feliz, é bom que ouça cantar, porque a música confirma as comoções da felicidade. Se o país é infeliz, é também bom que ouça cantar, porque a música adoça as dores. Se o país é dócil, é bom que ouça música, porque a música adormece os furores, e produz a brandura. Em todos os casos, a música é útil. Deve ser até um meio de governo.

SILVEIRA

Não contesto nenhuma dessas razões; mas meu primo, se for efetivamente ministro, não aceitará semelhante proposta.

AGAPITO

Deve aceitar; mais ainda, se és meu amigo, deves interceder pelo Sr. Müller.

SILVEIRA

Por quê?

AGAPITO
(baixo a Silveira)

Filho, eu namoro a prima-dona! (alto) Se me perguntarem quem é a prima-dona, não saberei responder; é um anjo e um diabo; é a mulher que resume as duas naturezas, mas a mulher perfeita, completa, única. Que olhos! Que porte! Que donaire! Que pé! Que voz!

SILVEIRA

Também a voz?

AGAPITO

Nela não há primeiros ou últimos merecimentos. Tudo é igual; tem tanta formosura, quanta graça, quanto talento! Se a visses! Se a ouvisses!

MÜLLER

E as outras? Tenho uma andaluza... (levando os dedos á boca e beijando-os) divina! É a flor das andaluzas!

AGAPITO

Tu não conheces as andaluzas.

SILVEIRA

Tenho uma que me mandaram de presente.

MÜLLER

Pois, senhor, eu acho que o governo deve aceitar com ambas as mãos a minha proposta.

AGAPITO
(baixo a Silveira)

E depois, eu acho que tenho direito a este obséquio; votei com vocês nas eleições.

SILVEIRA

Mas...

AGAPITO

Não mates o meu amor ainda nascente.

SILVEIRA

Enfim, o primo resolverá.



Cena XII

OS MESMOS, PACHECO, BASTOS

PACHECO

Dá licença?

SILVEIRA
(à parte)

Oh! aí está toda a procissão!

BASTOS

S. Exa.?

SILVEIRA

Saiu. Queiram sentar-se.

PACHECO

Foi naturalmente ter com os companheiros para assentar na política do gabinete. Eu acho que deve ser a política moderada. É a mais segura.

SILVEIRA

É a opinião de nós todos.

PACHECO

É a verdadeira opinião. Tudo o que não for isto é sofismar a situação.

BASTOS

Eu não sei se isso é o que a situação pede; o que sei é que S. Exa. deve colocar-se na altura que lhe compete, a altura de um Hércules. O déficit é o leão de Neméia; é preciso matá-lo. Agora se para aniquilar esse monstro, é preciso energia ou moderação, isso não sei; o que sei é que é preciso talento e muito talento, e nesse ponto ninguém pode ombrear com S. Exa.

PACHECO

Nesta última parte concordamos todos.

BASTOS

Mas que moderação é essa? Pois faz-se jus aos cantos do poeta e ao cinzel do estatuário com um sistema de moderação? Recorramos aos heróis... Aquiles foi moderado? Heitor foi moderado? Eu falo pela poesia, irmã carnal da política, porque ambas são filhas de Júpiter.

PACHECO

Sinto não ter agora os meus artigos. Não posso ser mais claro do que fui naquelas páginas, realmente as melhores que tenho escrito.

BASTOS

Ah! V. S. também escreve?

PACHECO

Tenho escrito vários artigos de apreciação política.

BASTOS

Eu escrevo em verso; mas nem por isso deixo de sentir prazer, travando conhecimento com V.S.

PACHECO

Oh! Senhor.

BASTOS

Talvez... Eu já disse que sou da política de S. Exa.; e contudo ainda não sei (para falar sempre em Júpiter...) ainda não sei se ele é filho de Júpiter Libertador ou Júpiter Stator; mas já sou da política de S. Exa.; e isto porque sei que, filho de um ou de outro, há de sempre governar na forma indicada pela situação, que é a mesma já prevista nos meus artigos, principalmente o V...



Cena XIII

OS MESMOS, MARTINS

BASTOS

Aí chega S. Exa.

MARTINS

Meus senhores...

SILVEIRA
(apresentando Pereira)

Aqui o senhor vem convidar-te para jantar com ele.

MARTINS

Ah!

PEREIRA

É verdade; soube da sua nomeação e vim, conforme o coração me pediu, oferecer-lhe uma prova pequena da minha simpatia.

MARTINS

Agradeço a simpatia; mas o boato que correu hoje, desde manhã, é falso... O ministério está completo, sem mim.

TODOS

Ah!

MATEUS

Mas quem são os novos?

MARTINS

Não sei.

PEREIRA
(à parte)

Nada, eu não posso perder um jantar e um compadre.

BASTOS
(à parte)

E a minha ode? (a Mateus) Fica?

MATEUS

Nada, eu vou. (aos outros) Vou saber quem é o novo ministro para oferecer-lhe o meu invento...

BASTOS

Sem incômodo, sem incômodo.

SILVEIRA
(a Bastos e Mateus)

Esperem um pouco.

PACHECO

E não sabe qual será a política do novo ministério? É preciso saber. Se não for a moderação, está perdido. Vou averiguar isso.

MARTINS

Não janta conosco?

PACHECO

Um destes dias... obrigado... até depois...

SILVEIRA

Mas esperem: onde vão? Ouçam ao menos uma história. É pequena, mas conceituosa. Um dia anunciou-se um suplício. Toda gente correu a ver o espetáculo feroz. Ninguém ficou em casa: velhos, moços, homens, mulheres, crianças, tudo invadiu a praça destinada à execução. Mas, porque viesse o perdão à última hora, o espetáculo não se deu e a forca ficou vazia. Mais ainda: o enforcado, isto é, o condenado, foi em pessoa à praça pública dizer que estava salvo e confundir com o povo as lágrimas de satisfação. Houve um rumor geral, depois um grito, mais dez, mais cem, mais mil romperam de todos os ângulos da praça, e uma chuva de pedras deu ao condenado a morte de que o salvara a real clemência. — Por favor, misericórdia para este. (apontando para Martins) Não tem culpa nem da condenação, nem da absolvição.

PEREIRA

A que vem isto?

PACHECO

Eu não lhe acho graça alguma!

BASTOS

Histórias da carochinha!

MATEUS

Ora adeus! Boa tarde.

OS OUTROS

Boa Tarde.



Cena XIV

MARTINS e SILVEIRA

MARTINS

Que me dizes a isto?

SILVEIRA

Que hei de dizer! Estavas a surgir... dobraram o joelho: repararam que era uma aurora boreal, voltaram as costas e lá se vão em busca do sol... São especuladores!

MARTINS

Deus te livre destes e de outros...

SILVEIRA

Ah! Livra... livra. Afora os incidentes como o Botafogo... ainda não me arrependi das minhas loucuras, como tu lhes chamas. Um alazão não leva ao poder, mas também não leva à desilusão.

MARTINS

Vamos jantar.



FIM

Nenhum comentário:

Postar um comentário