domingo, 2 de maio de 2010

O PROTOCOLO - Teatro de Machado de Assis

Comédia em um ato

Representada pela primeira vez no Ateneu Dramático do Rio de Janeiro em novembro de 1862.

PERSONAGENS

PINHEIRO
VENÂNCIO ALVES
ELISA
LULU

Atualidade.
Em casa de Pinheiro
(Sala de visitas.)



Cena I

ELISA, VENÂNCIO ALVES

ELISA

Está meditando?

VENÂNCIO
(como que acordando)

Ah! Perdão!

ELISA

Estou afeita à alegria constante de Lulu, e não posso ver ninguém triste.

VENÂNCIO

Exceto a senhora mesma.

ELISA

Eu!

VENÂNCIO

A senhora!

ELISA

Triste, por que, meu Deus?

VENÂNCIO

Eu sei! Se a rosa dos campos me fizesse a mesma pergunta, eu responderia que era falta de orvalho e de sol. Quer que lhe diga que é falta de... de amor?

ELISA

Não diga isso!

VENÂNCIO

Com certeza, é.

ELISA

Donde conclui?

VENÂNCIO

A senhora tem um sol oficial e um orvalho legal que não sabem animá-la. Há nuvens...

ELISA

É suspeita sem fundamento.

VENÂNCIO

É realidade.

ELISA

Que franqueza a sua!

VENÂNCIO

Ah! É que o meu coração é virginal, e portanto sincero.

ELISA

Virginal a todos os respeitos?

VENÂNCIO

Menos a um.

ELISA

Não serei indiscreta: é feliz.

VENÂNCIO

Esse é o engano. Basta essa exceção para trazer-me em um temporal. Tive até certo tempo o sossego e a paz do homem que está fechado no gabinete sem se lhe dar da chuva que açoita as vidraças.

ELISA

Por que não se deixou ficar no gabinete?

VENÂNCIO

Podia acaso fazê-lo? Passou fora a melodia do amor; o coração é curioso e bateu-me que saísse, levantei-me, deixei o livro que estava lendo; era Paulo e Virgínia! Abri a porta e nesse momento a fada passava. (reparando nela) Era de olhos negros e cabelos castanhos.

ELISA

Que fez?

VENÂNCIO

Deixei o gabinete, o livro, tudo para seguir a fada do amor!

ELISA

Não reparou se ela ia só?

VENÂNCIO
(suspirando)

Não ia só!

ELISA
(em tom de censura)

Fez mal.

VENÂNCIO

Talvez. Curioso animal que é o homem! Em criança deixa a casa paterna para acompanhar os batalhões que vão à parada; na mocidade deixa os conchegos e a paz para seguir a fada do amor; na idade madura deixa-se levar pelo deus Momo da política ou por qualquer outra fábula do tempo. Só na velhice deixa passar tudo sem mover-se, mas... é porque já não tem pernas!

ELISA

Mas que tencionava fazer se ela não ia só?

VENÂNCIO

Nem sei.

ELISA

Foi loucura. Apanhou chuva!

VENÂNCIO

Ainda estou apanhando.

ELISA

Então é um extravagante.

VENÂNCIO

Sim. Mas um extravagante por amor... ó poesia!

ELISA

Mau gosto!

VENÂNCIO

A Sra. é a menos competente para dizer isso.

ELISA

É sua opinião?

VENÂNCIO

É opinião deste espelho.

ELISA

Ora!

VENÂNCIO

E dos meus olhos também.

ELISA

Também dos seus olhos?

VENÂNCIO

Olhe para eles.

ELISA

Estou olhando.

VENÂNCIO

O que vê dentro?

ELISA

Vejo... (com enfado) Não vejo nada!

VENÂNCIO

Ah! Está convencida!

ELISA

Presumido!

VENÂNCIO

Eu! Essa agora não é má!

ELISA

Para que seguiu quem passava quieta pela rua? Supunha abrandá-la com as suas mágoas?

VENÂNCIO

Acompanhei-a, não para abrandá-la, mas para servi-la; viver do rasto de seus pés, das migalhas dos seus olhares; apontar-lhe os regos a saltar, apanhar-lhe o leque quando caísse (cai o leque a Elisa. Venâncio Alves apressa-se a apanhá-lo e entrega-lho) Finalmente...

ELISA

Finalmente... Fazer profissão de presumido!

VENÂNCIO

Acredita deveras que o seja?

ELISA

Parece.

VENÂNCIO

Pareço, mas não sou. Presumido seria se eu exigisse a atenção exclusiva da fada da noite. Não quero! Basta-me ter coração para amá-la, é a minha maior ventura!

ELISA

A que pode levá-lo esse amor? Mais vale sufocar no coração a chama nascente do que condená-la a arder em vão.

VENÂNCIO

Não; é uma fatalidade! Arder e renascer, como a fênix, suplício eterno, mas amor eterno também.

ELISA

Eia! Ouça uma... amiga. Não dê a esse sentimento tanta importância. Não é a fatalidade da fênix, é a fatalidade... do relógio. Olhe para aquele. Lá anda correndo e regulando; mas se amanhã não lhe derem corda, ele parará. Não dê corda à paixão, que ela parará por si.

VENÂNCIO

Isso não!

ELISA

Faça isso... Por mim!

VENÂNCIO

Pela senhora! Sim... não...

ELISA

Tenha ânimo!






Cena II

VENÂNCIO ALVES, ELISA, PINHEIRO

PINHEIRO
(a Venâncio)

Como está?

VENÂNCIO

Bom. Conversávamos sobre coisas da moda. Viu os últimos figurinos? São de apurado gosto.

PINHEIRO

Não vi.

VENÂNCIO

Está com um ar triste...

PINHEIRO

Triste, não; aborrecido... É a minha moléstia do domingo.

VENÂNCIO

Ah!

PINHEIRO

Ando a abrir e fechar a boca; é um círculo vicioso.

ELISA

Com licença.

VENÂNCIO

Oh! Minha senhora!

ELISA

Faço anos hoje; venha jantar conosco.

VENÂNCIO

Venho. Até logo.




Cena III

PINHEIRO, VENÂNCIO ALVES

VENÂNCIO

Anda então em um círculo vicioso?

PINHEIRO

É verdade. Tentei dormir, não pude; tentei ler, não pude. Que tédio, meu amigo!

VENÂNCIO

Admira!

PINHEIRO

Por quê?

VENÂNCIO

Porque não sendo viúvo nem solteiro...

PINHEIRO

Sou casado...

VENÂNCIO

É verdade.

PINHEIRO

Que adianta?

VENÂNCIO

É boa! Adianta ser casado. Compreende nada melhor que o casamento?

PINHEIRO

O que pensa da China, Sr. Venâncio?

VENÂNCIO

Eu? Penso...

PINHEIRO

Já sei, vai repetir-me o que tem lido nos livros e visto nas gravuras; não sabe mais nada.

VENÂNCIO

Mas as narrações verídicas...

PINHEIRO

São minguadas ou exageradas. Vá à China, e verá como as coisas mudam tanto ou quanto de figura.

VENÂNCIO

Para adquirir essa certeza não vou lá.

PINHEIRO

É o que lhe aconselho; não se case!

VENÂNCIO

Que não me case?

PINHEIRO

Ou não vá à China, como queira. De fora, conjecturas, sonhos, castelos no ar, esperanças, comoções... Vem o padre, dá a mão aos noivos, leva-os, chegam às muralhas... Upa! Estão na China! Com a altura da queda fica-se atordoado, e os sonhos de fora continuam dentro: é a lua-de-mel; mas, à proporção que o espírito se restabelece, vai vendo o país como ele é; então poucos lhe chamam celeste império, algum infernal império, muitos purgatorial império!

VENÂNCIO

Ora, que banalidade!

PINHEIRO

Parece-lhe?

VENÂNCIO

E que sofisma!

PINHEIRO

Quantos anos têm, Sr. Venâncio?

VENÂNCIO

Vinte e quatro.

PINHEIRO

Esta com a mania que eu tinha na sua idade.

VENÂNCIO

Qual mania?

PINHEIRO

A de querer acomodar todas as coisas à lógica, e a lógica a todas as coisas. Viva, experimente e convencer-se-á de que nem sempre se pode alcançar isso.

VENÂNCIO

Quer-me parecer que há nuvens no céu conjugal?

PINHEIRO

Há. Nuvens pesadas.

VENÂNCIO

Já eu as tinha visto com o meu telescópio.

PINHEIRO

Ah! Se eu não estivesse preso...

VENÂNCIO

É exageração de sua parte. Capitule, Sr. Pinheiro, capitule. Com mulheres bonitas é um consolo capitular. Há de ser o meu preceito de marido.

PINHEIRO

Capitular é vergonha.

VENÂNCIO

Com uma moça encantadora?...

PINHEIRO

Não é uma razão.

VENÂNCIO

Alto lá! Beleza obriga.

PINHEIRO

Pode ser verdade, mas eu peço respeitosamente licença para declarar-lhe que estou com o novo princípio de não-intervenção nos Estados. Nada de intervenções.

VENÂNCIO

A minha intervenção é toda conciliatória.

PINHEIRO

Não duvido, nem duvidava. Não veja no que disse injúria pessoal. Folgo de recebê-lo e de contá-lo entre os afeiçoados de minha família.

VENÂNCIO

Muito obrigado. Dá-me licença?

PINHEIRO

Vai rancoroso?

VENÂNCIO

Ora qual! Até a hora do jantar.

PINHEIRO

Há de desculpar-me, não janto em casa. Mas considere-se com a mesma liberdade. (sai Venâncio. Entra Lulu)






Cena IV

PINHEIRO, LULU

LULU

Viva primo!

PINHEIRO

Como estás, Lulu?

LULU

Meu Deus, que cara feia!

PINHEIRO

Pois é a que trago sempre.

LULU

Não é, não, senhor; a sua cara de costume é uma cara amável; essa é de afugentar a gente. Deu agora para andar arrufado com sua mulher!

PINHEIRO

Mau!

LULU

Escusa de zangar-se também comigo. O primo é um bom marido; a prima é uma excelente esposa; ambos formam um excelente casal. É bonito andarem amuados, sem se olharem nem se falarem? Até parece namoro!

PINHEIRO

Ah! Tu namoras assim?

LULU

Eu não namoro.

PINHEIRO

Com essa idade?

LULU

Pois então! Mas escute: estes arrufos vão continuar?

PINHEIRO

Eu sei lá.

LULU

Sabe, sim. Veja se isto é bonito na lua-de-mel; ainda não há cinco meses que se casaram.

PINHEIRO

Não há, não. Mas a data não vem ao caso. A lua-de-mel ofuscou-se; é alguma nuvem que passa; deixá-la passar. Queres que eu faça como aquele doido que, ao enublar-se o luar pedia a Júpiter que espevitasse o candeeiro? Júpiter é independente, e me apagaria de todo o luar, como fez com o doido. Aguardemos antes que algum vento sopre do forte, ou do sul, e venha dissipar a passageira sombra.

LULU

Pois sim! Ela é o norte, o primo é o sul; faça com que o vento sopre do sul.

PINHEIRO

Não, senhora, há de soprar do norte.

LULU

Capricho sem graça!

PINHEIRO

Quer saber de uma coisa, Lulu? Estou pensando que é uma brisazinha do norte encarregada de fazer clarear o céu.

LULU

Oh! Nem por graça!

PINHEIRO

Confessa Lulu!

LULU

Posso ser uma brisa do sul, isso sim!

PINHEIRO

Não terás essa glória.

LULU

Então o primo é caprichoso assim?

PINHEIRO

Caprichoso? Ousas tu, posteridade de Eva, falar de capricho a mim, posteridade de Adão!

LULU

Oh!...

PINHEIRO

Tua prima é uma caprichosa. De seus caprichos nasceram estas diferenças entre nós. Mas para caprichosa, caprichoso; contrafiz-me, estudei no código feminino meios de pôr os pés à parede, e tornei-me de antes quebrar que torcer. Se ela não der um passo, também eu não dou.

LULU

Pois eu estendo a mão direita a um, e a esquerda a outro, e os aproximarei.

PINHEIRO

Queres ser o anjo da reconciliação?

LULU

Tal qual.

PINHEIRO

Contanto que eu não passe pelas forcas caudinas.

LULU

Hei de fazer as coisas airosamente.

PINHEIRO

Insistes nisso? Eu podia dizer que era ainda um capricho de mulher. Mas não digo não, chamo antes afeição e dedicação.






Cena V

PINHEIRO, LULU, ELISA

LULU
(baixo)

Olhe, aí está ela!

PINHEIRO
(baixo)

Deixá-la.

ELISA

Andava a tua procura, Lulu.

LULU

Para quê, prima?

ELISA

Para me dares uma pouca de lá.

LULU

Não tenho aqui; vou buscar.

PINHEIRO

Lulu!

LULU

O que é?

PINHEIRO
(baixo)

Dize a tua prima que eu janto fora.

LULU
(indo a Elisa, baixo.)

O primo janta fora.

ELISA
(baixo)

Se for por ter o que fazer, podemos esperar.

LULU
(a Pinheiro, baixo)

Se for por ter o que fazer, podemos esperar.

PINHEIRO
(baixo)

É um convite.

LULU
(alto)

É um convite.

ELISA
(alto)

Ah! Se for um convite pode ir; jantaremos sós.

PINHEIRO
(levantando-se)

Consentirá minha senhora, que lhe faça uma observação: mesmo sem a sua licença, eu podia ir!

ELISA

Ah! É claro! Direito de marido... Quem lho contesta?

PINHEIRO

Havia de ser engraçada a contestação!

ELISA

Mesmo muito engraçada!

PINHEIRO

Tanto, quanto foi ridícula a licença.

LULU

Primo!

PINHEIRO
(a Lulu)

Cuida das tuas novelas! Vai encher a cabeça de romantismo, é moda; colhe as idéias absurdas que encontrares nos livros, e depois faz da casa de teu marido a cena do que houveres aprendido com as leituras: é também moda. (sai arrebatadamente)






Cena VI

LULU, ELISA

LULU

Como está o primo!

ELISA

Mau humor, há de passar!

LULU

Sabe como passava depressa? Pondo fim a estes amuos.

ELISA

Sim, mas cedendo ele.

LULU

Ora, isso é teima!

ELISA

É dignidade!

LULU

Passam dias sem se falarem, e, quando se falam, é assim.

ELISA

Ah! Isto é o que menos cuidado me dá. Ao princípio fiquei amofinada, e devo dizê-lo, chorei. São coisas estas que só se confessam entre mulheres. Mas hoje vou fazer o que as outras fazem: curar pouco das torturas domésticas. Coração à larga, minha filha, se ganha o céu, e não se perde a terra.

LULU

Isso é zanga!

ELISA

Não é zanga, é filosofia. Há de chegar o teu dia, deixa estar. Saberás então, quanto vale a ciência do casamento.

LULU

Pois explica, mestra.

ELISA

Não; saberás por ti mesma. Quero, entretanto, instruir-te de uma coisa. Não lhe ouviu falar no direito? É engraçada a história do direito! Todos os poetas concordam em dar às mulheres o nome de anjos. Os outros homens não se atrevem a negar, mas dizem consigo: "Também nós somos anjos!". Nisto há sempre um espelho ao lado, que lhes faz ver que, para anjos faltam-lhes... asas! Asas! Asas! A todo o custo. E arranjam-nas legítimas ou não, pouco importa. Essas asas os levam a jantar fora, a dormir fora, muitas vezes a amar fora. A essas asas chamam enfaticamente: o nosso direito!

LULU

Mas, prima, as nossas asas?

ELISA

As nossas? Bem se vê que és inexperiente. Estuda, estuda, e hás de achá-las.

LULU

Prefiro não usar delas.

ELISA

Hás de dizer o contrário quando for ocasião. Meu marido lá bateu as suas; o direito de jantar fora! Caprichou em não levar-me à casa de minha madrinha; é ainda o direito. Daqui nasceram os nossos arrufos, arrufos sérios. Uma santa zangar-se-ia, como eu. Para caprichoso, caprichosa!

LULU

Pois sim! Mas estas coisas vão dando na vista; já as pessoas que freqüentam a nossa casa têm reparado; o Venâncio Alves não me deixa sossegar com as suas perguntas.

ELISA

Ah! Sim!

LULU

Que rapaz aborrecido, prima!

ELISA

Não acho!

LULU

Pois eu acho: aborrecido com as suas afetações!

ELISA

Como aprecias mal! Ele fala com graça e chamá-lo afetado!...

LULU

Que olhos os seus, prima!

ELISA
(indo ao espelho)

São bonitos?

LULU

São maus.

ELISA

Em que, minha filósofa?

LULU

Em verem o anverso de Venâncio Alves, e o reverso do primo.

ELISA

És uma tola.

LULU

Só?

ELISA

E uma descomedida.

LULU

É porque os amo a ambos. E depois...

ELISA

Depois, o quê?

LULU

Vejo no Venâncio Alves um arzinho de pretendente.

ELISA

À tua mão direita?

LULU

À tua mão esquerda.

ELISA

Oh!

LULU

É coisa que se adivinha... (ouve-se um carro) Aí está o homem.

ELISA

Vai recebê-lo. (Lulu vai até à porta. Elisa chega-se a um espelho e compõe o toucado)






Cena VII

ELISA, LULU, VENÂNCIO

LULU

O Sr. Venâncio Alves chega a propósito; falávamos na sua pessoa.

VENÂNCIO

Em que ocupava eu a atenção de tão gentis senhoras?

LULU

Fazíamos o inventário das suas qualidades.

VENÂNCIO

Exageravam-me o cabedal, já sei.

LULU

A prima dizia: "Que moço amável é o Sr. Venâncio Alves!".

VENÂNCIO

Ah! E a senhora?

LULU

Eu dizia: "Que moço amabilíssimo é o Sr. Venâncio Alves!".

VENÂNCIO

Dava-me o superlativo. Não me cai no chão esta atenção gramatical.

LULU

Eu sou assim: estimo ou aborreço no superlativo. Não é prima?

ELISA
(contrariada)

Eu sei lá!

VENÂNCIO

Como deve ser triste cair-lhe no desagrado!

LULU

Vou avisando, é o superlativo.

VENÂNCIO

Dou-me por feliz. Creio que lhe caí em graça...

LULU

Caiu! Caiu! Caiu!

ELISA

Lulu vai buscar a lá.

LULU

Vou, prima, vou. (sai correndo)






Cena VIII

VENÂNCIO, ELISA

VENÂNCIO

Voa qual uma andorinha esta moça!

ELISA

É próprio da idade.

VENÂNCIO

Vou sangrar-me...

ELISA

Hein?

VENÂNCIO

Sangrar-me em saúde contra uma suspeita sua.

ELISA

Suspeita?

VENÂNCIO

Suspeita de haver-me adiantado o meu relógio.

ELISA
(rindo)

Posso crê-lo.

VENÂNCIO

Estará em erro. Olhe, são duas horas; confronte com o seu: duas horas.

ELISA

Pensa que acreditei seriamente?

VENÂNCIO

Vim mais cedo, e de passagem. Quis antecipar-me aos outros no cumprimento de um dever. Os antigos, em prova de respeito, depunham aos pés dos deuses grinaldas e festões; o nosso tempo, infinitamente prosaico, só nos permite oferendas prosaicas; neste álbum ponho eu o testemunho do meu júbilo pelo dia de hoje.

ELISA

Obrigada. Creio no sentimento que o inspira e admiro o gosto da escolha.

VENÂNCIO

Não é a mim que deve tecer o elogio.

ELISA
Foi gosto de quem vendeu?

VENÂNCIO

Não, minha senhora, eu próprio o escolhi; mas a escolha foi das mais involuntárias; tinha a sua imagem na cabeça, e não podia deixar de acertar.

ELISA

É uma fineza de quebra. (folheia o álbum)

VENÂNCIO

É por isso que me vibra um golpe?

ELISA

Um golpe?

VENÂNCIO

É tão casta que não há de calcular comigo; mas as suas palavras são proferidas com uma indiferença que eu direi instintiva.

ELISA

Não creia...

VENÂNCIO

Que não creia na indiferença?

ELISA

Não... Não creia no cálculo...

VENÂNCIO

Já disse que não. Em que devo crer seriamente?

ELISA

Não sei.

VENÂNCIO

Em nada, não lhe parece?

ELISA

Não reza a história de que os antigos, ao depositarem as suas oferendas, apostrofassem os deuses.

VENÂNCIO

É verdade: este uso é do nosso tempo.

ELISA

Do nosso prosaico tempo.

VENÂNCIO

A senhora ri? Riamos todos! Também eu rio, e da melhor vontade.

ELISA

Pode rir sem terror. Acha que sou deusa? Mas os deuses já se foram. Estátua, isto sim.

VENÂNCIO

Será estátua. Não me inculpe, nesse caso, a admiração.

ELISA

Não inculpo, aconselho.

VENÂNCIO
(repoltreando-se)

Foi excelente esta idéia do divã. É um consolo para quem está cansado, e quando à comodidade junta o bom gosto, como este, então é ouro sobre azul. Não acha engenhoso, D. Elisa?

ELISA

Acho.

VENÂNCIO

Devia ser inscrito entre os beneméritos da humanidade o autor disto. Com trastes assim, e dentro de uma casinha de campo, prometo ser o mais sincero anacoreta que jamais fugiu às tentações do mundo. Onde comprou este?

ELISA

Em casa de Costrejean.

VENÂNCIO

Comprou uma preciosidade.

ELISA

Com outra que está agora por cima, e que eu não comprei, fazem duas, duas preciosidades.

VENÂNCIO

Disse muito bem! É tal o conchego que até se podem esquecer as horas... É verdade, que horas são? Duas e meia. A senhora dá-me licença?

ELISA

Já se vai?

VENÂNCIO

Até a hora do jantar.

ELISA

Olhe, não me queira mal.

VENÂNCIO

Eu, mal! E por quê?

ELISA

Não me obrigue a explicações inúteis.

VENÂNCIO

Não obrigo, não. Compreendo de sobejo a sua intenção. Mas, francamente, se a flor está alta para ser colhida, é crime aspirar-lhe de longe o aroma e adorná-la?

ELISA

Crime não é.

VENÂNCIO

São duas e meia. Até a hora do jantar.






Cena IX

VENÂNCIO, ELISA, LULU

LULU

Sai com a minha chegada?

VENÂNCIO

Ia sair.

LULU

Até quando?

VENÂNCIO

Até a hora do jantar.

LULU

Ah! Janta conosco?

ELISA

Sabes que faço anos, e esse dia é o dos amigos.

LULU

É justo, é justo!

VENÂNCIO

Até logo.






Cena X

LULU, ELISA

LULU

Oh! Teve presente!

ELISA

Não achas de gosto?

LULU

Não tanto.

ELISA

É prevenção. Suspeitas que é do Venâncio Alves?

LULU

Atinei logo.

ELISA

Que tens contra esse moço?

LULU

Já to disse.

ELISA

É mal se deixar ir pelas antipatias.

LULU

Antipatias não tenho.

ELISA

Alguém sobe.

LULU

Há de ser o primo.

ELISA

Ele! (sai)






Cena XI

PINHEIRO, LULU

LULU

Viva! Está mais calmo?

PINHEIRO

Calmo sempre, menos nas ocasiões em que és... indiscreta.

LULU

Indiscreta!

PINHEIRO

Indiscreta, sim senhora! Para que veio aquela exclamação quando eu falava com Elisa?

LULU

Foi porque o primo falou de um modo...

PINHEIRO

De um modo, que é o meu modo, que é modo de todos os maridos contrariados.

LULU

De um modo que não é o seu, primo. Para que se fazer mal quando é bom? Pensa que não se percebe quanto lhe custa contrafazer-se?

PINHEIRO

Vais dizer que sou um anjo!

LULU

O primo é um excelente homem, isso sim. Olhe, sou importuna, e hei de sê-lo até vê-los desamuados.

PINHEIRO

Ora, prima, para irmã de caridade, é muita criança. Dispenso os teus conselhos e os teus serviços.

LULU

É um ingrato.

PINHEIRO

Serei.

LULU

Homem sem coração.

PINHEIRO

Quanto a isso, é questão de fato; põe aqui a tua mão, não sentes bater? É o coração.

LULU

Eu sinto um charuto.

PINHEIRO

Um charuto? Pois é isso mesmo. Coração e charuto são símbolos um do outro; ambos se queimam e se desfazem em cinzas. Olha, este charuto, sei eu que o tenho para fumar; mas o coração, esse creio que já está todo no cinzeiro.

LULU

Sempre a brincar!

PINHEIRO

Achas que devo chorar?

LULU

Não, mas...

PINHEIRO

Mas o quê?

LULU

Não digo, é uma coisa muito feia.

PINHEIRO

Coisas feias na tua boca, Lulu!

LULU

Muito feia.

PINHEIRO

Não há de ser, dize.

LULU

Demais, posso parecer indiscreta.

PINHEIRO

Ora, qual. É alguma coisa de meu interesse?

LULU

Se é!

PINHEIRO

Pois, então, não és indiscreta!

LULU

Então, quantas caras têm a indiscrição?

PINHEIRO

Duas.

LULU

Boa moral!

PINHEIRO

Moral à parte. Fala, o que é?

LULU

Que curioso! É uma simples observação; não lhe parece que é mal desamparar a ovelha, havendo tantos lobos, primo?

PINHEIRO

Onde aprendeste isso?

LULU

Nos livros que me dão para ler.

PINHEIRO

Estás adiantada! E já que sabes tanto, falarei como se falasse a um livro. Primeiramente, eu não desamparo; depois, não vejo lobos.

LULU

Desampara, sim!

PINHEIRO

Não estou em casa?

LULU

Desampara o coração.

PINHEIRO

Mas os lobos?...

LULU

Os lobos vestem-se de cordeiros, e apertam a mão ao pastor, conversam com ele, sem que deixem de olhar furtivamente para a ovelha mal guardada.

PINHEIRO

Não há nenhum.

LULU

São assíduos; visitas sobre visitas; muita zumbaia, muita atenção, mas lá por dentro a ruminarem coisas más.

PINHEIRO

Ora, Lulu, deixa-te de tolices.

LULU

Não digo mais nada. Onde foi Venâncio Alves?

PINHEIRO

Não sei. Ali está um que não há de ser acusado de lobo.

LULU

Os lobos vestem-se de cordeiros.

PINHEIRO

O que é que dizes?

LULU

Eu não digo nada. Vou tocar piano. Quer ouvir um noturno ou prefere uma polca?

PINHEIRO

Lulu, ordeno-lhe que fale!

LULU

Para quê? Para ser indiscreta?

PINHEIRO

Venâncio Alves?...

LULU

É um tolo, nada mais. (sai. Pinheiro fica pensativo. Vai à mesa e vê o álbum)






Cena XII

PINHEIRO, ELISA

PINHEIRO

Há de desculpar-me, mas, creio não ser indiscreto, desejando saber com que sentimento recebeu este álbum.

ELISA

Com o sentimento com que se recebem álbuns.

PINHEIRO

A resposta em nada me esclarece.

ELISA

Há então sentimentos para receber álbuns, e há um com que eu devera receber este?

PINHEIRO

Devia saber que há.

ELISA

Pois... recebi com esse.

PINHEIRO

A minha pergunta poderá parecer indiscreta, mas...

ELISA

Oh! Indiscreta, não!

PINHEIRO

Deixe minha senhora esse tom sarcástico, e veja bem que eu falo sério.

ELISA

Vejo isso. Quanto à pergunta, está exercendo um direito.

PINHEIRO

Não lhe parece que seja um direito este de investigar as intenções dos pássaros que penetram em minha seara, Para saber se são daninhos?

ELISA

Sem dúvida. Ao lado desse direito, esta o nosso dever, dever das searas, de prestar-se a todas as suspeitas.

PINHEIRO

É inútil a argumentação por esse lado: os pássaros cantam e as cantigas deleitam.

ELISA

Está falando sério?

PINHEIRO

Muito sério.

ELISA

Então consinta que faça contraste: eu rio-me.

PINHEIRO

Não me tome por um mal sonhador de perfídias; perguntei, porque estou seguro de que não são muito santas as intenções que trazem a minha casa Venâncio Alves.

ELISA

Pois eu nem suspeito...

PINHEIRO

Vê o céu nublado e as águas turvas: pensa que é azada ocasião para pescar.

ELISA

Está feito, é de pescador atilado!

PINHEIRO

Pode ser um mérito a seus olhos, minha senhora; aos meus é um vício de que o pretendo curar, arrancando-lhe as orelhas.

ELISA

Jesus! Está com intenções trágicas!

PINHEIRO

Zombe ou não, há de ser assim.

ELISA

Mutilado ele, que pretende fazer da mesquinha Desdêmona?

PINHEIRO

Conduzi-la de novo ao lar paterno.

ELISA

Mas afinal de contas, meu marido, obriga-me a falar também seriamente.

PINHEIRO

Que tem a dizer?

ELISA

Fui tirada há meses da casa de meu pai para ser sua mulher; agora, por um pretexto frívolo, leva-me de novo ao lar paterno. Parece-lhe que eu seja uma casaca que se pode tirar por estar fora da moda?

PINHEIRO

Não estou para rir, mas digo-lhe que antes fosse uma casaca.

ELISA

Muito obrigada!

PINHEIRO

Qual foi a casaca que já me deu cuidados? Porventura quando saio com a minha casaca não vou descansado a respeito dela? Não sei eu perfeitamente que ela não olha complacente para as costas alheias, e fica descansada nas minhas?

ELISA

Pois me tome por uma casaca. Vê em mim alguns salpicos?

PINHEIRO

Não, não vejo. Mas vejo a rua cheia de lama e um carro que vai passando; e nestes casos, como não gosto de andar mal asseado, entro em um corredor, com a minha casaca, à espera de que a rua fique desimpedida.

ELISA

Bem. Vejo que quer a nossa separação temporária... até que passe o carro. Durante esse tempo como pretende andar? Em mangas de camisa?

PINHEIRO

Durante esse tempo não andarei, ficarei em casa.

ELISA

Oh! Suspeita por suspeita! Eu não creio nessa reclusão voluntária.

PINHEIRO

Não crê? E por quê?

ELISA

Não creio, por mil razões.

PINHEIRO

Dê-me uma, e fique com as novecentas e noventa e nove.

ELISA

Posso dar-lhe mais de uma e até todas. A primeira é a simples dificuldade de conter-se entre as quatro paredes desta casa.

PINHEIRO

Verá que posso.

ELISA

A segunda é que não deixará de aproveitar o isolamento para ir ao alfaiate provar outras casacas.

PINHEIRO

Oh!

ELISA

Para ir ao alfaiate é preciso sair; quero crer que não fará vir o alfaiate à casa.

PINHEIRO

Conjecturas suas. Reflita, que não está dizendo coisas assisadas. Conhece o amor que lhe tive e lhe tenho, e sabe de que sou capaz. Mas, voltemos ao ponto de partida. Este livro pode nada significar e significar muito. (folheia) Que responde?

ELISA

Nada.

PINHEIRO

Oh! Que é isto? É a letra dele.

ELISA

Não tinha visto.

PINHEIRO

É talvez uma confidência. Posso ler?

ELISA

Por que não?

PINHEIRO
(lendo)

"Se me privas dos teus aromas, ó rosa que foste abrir sobre um rochedo, não podes fazer com que eu te não ame, contemple e abençoe!" Como acha isto?

ELISA

Não sei.

PINHEIRO

Não tinha lido?

ELISA
(sentando-se)

Não.

PINHEIRO

Sabe quem é esta rosa?

ELISA

Cuida que serei eu?

PINHEIRO

Parece. O rochedo sou eu. Aonde o vai desencavar estas figuras.

ELISA

Foi talvez escrito sem intenção...

PINHEIRO

Ah! Foi... Ora diga, é bonito isso? Escreveria ele se não houvesse esperanças?

ELISA

Basta. Tenho ouvido. Não quero continuar a ser alvo de suspeitas. Esta frase é intencional; ele viu as águas turvas... De quem a culpa? Dele ou sua? Se as não houvesse agitado, elas estariam plácidas e transparentes como dantes.

PINHEIRO

A culpa é minha?

ELISA

Dirá que não é. Paciência. Juro-lhe que não sou cúmplice nas intenções deste presente.

PINHEIRO

Jura?

ELISA

Juro.

PINHEIRO

Acredito. Dente por dente, Elisa, como na pena de Talião. Aqui tens a minha mão em prova de que esqueço tudo.

ELISA

Também eu tenho a esquecer e esqueço.






Cena XIII

ELISA, PINHEIRO, LULU

LULU

Bravo! Voltou o bom tempo?

PINHEIRO

Voltou.

LULU

Graças a Deus! De que lado soprou o vento?

PINHEIRO

De ambos os lados.

LULU

Ora bem!

ELISA

Pára o carro.

LULU
(vai à janela)

Vou ver.

PINHEIRO

Há de ser ele.

LULU
(vai à porta)

Entre, entre.





Cena XIV

LULU, VENÂNCIO, ELISA, PINHEIRO

PINHEIRO
(baixo a Elisa)

Poupo-lhe as orelhas, mas hei de tirar desforra.

VENÂNCIO

Não faltei... Oh! Não foi jantar fora?

PINHEIRO

Não. A Elisa pediu-me que ficasse...

VENÂNCIO
(com uma careta)

Muito estimo.

PINHEIRO

Estima? Pois não é verdade?

VENÂNCIO

Verdade o quê?

PINHEIRO

Que tentasse perpetuar as hostilidades entre a potência marido e a potência mulher?

VENÂNCIO

Não percebo...

PINHEIRO

Ouvi falar de uma conferência e de umas notas... uma intervenção da sua parte na dissidência de dois estados unidos pela natureza e pela lei; gabaram-me os seus meios diplomáticos, as suas conferências repetidas, e até veio parar às minhas mãos este protocolo, tornado agora inútil, e que eu tenho a honra de depositar em suas mãos.

VENÂNCIO

Isto não é um protocolo... é um álbum... não tive intenção...

PINHEIRO

Tivesse ou não, arquive o volume, depois de escrever nele — que a potência Venâncio Alves não entra na santa-aliança.

VENÂNCIO

Não entra?... mas... creia... A senhora... me fará justiça.

ELISA

Eu? Eu entrego-lhe as credenciais.

LULU

Aceite, olhe que deve aceitar.

VENÂNCIO

Minhas senhoras, Sr. Pinheiro. (sai)

TODOS

Ah! Ah! Ah!

LULU

O jantar está na mesa. Vamos celebrar o tratado de paz.



FIM

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